quarta-feira, dezembro 11

A Primeira Verdade - Parte II

Enfim, deixe que lhe conte sobre o ciclo seguinte. Seguinte...será que foi mesmo o seguinte? Na verdade, não é possível criar uma linha cronológica para os ciclos. O dia em que tomamos consciência de quem somos marca o momento em que começamos a ser bombardeados com uma enorme torrente de informação. Sinceramente já não consigo dizer o que vi primeiro, se a queda de grandes impérios ou a queda dos preços do supermercado da esquina. Ainda hoje, quando penso profundamente em quem sou, chego à conclusão que deve haver no mundo grandes fenómenos. Coisas completamente fora da explicação racional. Se há renascidos, poderá também haver vampiros e criaturas fantásticas? 

Já fiz de tudo na vida, podemos dizer que também já estive por todo o lado. Com o tempo vim a perceber que, talvez, tudo seja possível. A certa altura da minha infindável vida, fui chefe de esquadra numa pequena aldeia ou cidade, a verdade é que já não me recordo. Até o nome me escapa, acho que era Freshford ou algo que o valha. Neste ciclo fui baptizado de Walter Smith Morris, mas todos me chamavam Morris, Chefe Morris na altura dos eventos que vou relatar. Não há nada de especial a apontar, sempre fui um individuo calmo, mesmo depois de tomar consciência após os meus dezassete anos. Este dom que temos mudou-me a vida, comecei a interessar-me por história, passava dias a fio na biblioteca. Acho que no fundo me tentava encontrar em acontecimentos históricos. Sempre quis ficar por Freshford, sempre quis ficar junto dos meus, acabei por ficar no sitio que me permitia olhar pela minha terra e pela minha gente. Não tive filhos ou fui casado, pode dizer-se que era um lobo solitário. Herdei uma quinta a cinco quilómetros da esquadra, não me posso queixar, os meus pais deixaram-me tudo o que podia assegurar uma vida tranquila.

Esta tranquilidade pode dizer-se que existia apenas à superfície, tornei-me um observador de pessoas, inconscientemente procurava mais renascidos. Talvez isto seja fruto da solidão, ou vice-versa, nunca me consegui aproximar de uma mulher. Durante este ciclo, tudo me pareceu infrutífero, para quê fazer uma vida se mais tarde tudo isto será atirado para uma trituradora cósmica? Infrutífero certamente. Dediquei anos da minha vida aos livros, história sobretudo, esta é a informação que para mim é pertinente. Por diversão lia também muito sobre o sobrenatural e supostos fenómenos, afinal se eu mesmo sou um fenómeno deve haver algo mais por ai. O que lhe vou contar ilustra isto mesmo. Devemos manter a nossa mente aberta, há mais para além do céu e da terra. 

Certa noite, já passava da meia noite acho eu, fui chamado a uma casa nos arredores de Freshford. Falei ao telefone com um senhor Keith Lowland, que por entre gritos e lágrimas exigia a minha presença para procurar o seu filho. Os detalhes não eram claros e a conversa pelo telefone era quase impossível devido ao estado deste senhor. Saí da esquadra e fiz-me ao caminho. Ao chegar fui recebido por Keith e Faye, um casal cujo filho tinha desaparecido no bosque. Avisei o casal Lowland que dada a hora, a visibilidade e o facto de haver lobos no bosque das traseiras da casa, seria difícil encontrar o seu filho Killian. Para ser honesto pensei que o miúdo tivesse renascido naquele momento. Quem sabe? Poderia ter fugido em pânico após o renascimento. Nunca saberemos se foi ou não, na verdade penso neste tipo de coisas a toda a hora sempre que vejo alguma notícia trágica. Mas continuemos. Foi uma confusão, a mãe alucinava que tinha visto o miúdo nu no bosque, depois chegou mais gente, havia um grupo de populares que queriam ajudar. Ordenei que a levassem dali, a senhora não estava em si. Na multidão avistei um vizinho meu, William Goldlock ou Godlard ou sei lá, experiente caçador e homem de meia idade como eu. Resolvi liderar a busca com Keith e Will, mas não tardou muito até que fossemos chamados na direcção oposta do caminho que havíamos tomado. Abandonámos o grupo em que seguíamos e corremos na direcção de um grito, era o caminho que Faye havia tomado com três homens que participavam na busca, acho que um deles até era policia, já não me recordo bem. Quando demos com ela demos também com os corpos dos três homens. Estavam no chão, jaziam numa poça comum de sangue. Pareciam ter sido atacados por animais, lobos, segundo Will. Faye afirmava que tinha sido ao miúdo a fazer aquilo, seria possível? Dadas as circunstancias, comuniquei a pedir apoio médico, tínhamos três cadáveres e a noite podia não acabar por ali. Pensei imediatamente num lobisomem, algo inédito em tantos ciclos vividos, a sensação de algo novo foi para mim uma injecção de adrenalina.

Continuámos as buscas, desta vez armados com caçadeiras. Andámos bastante no negrume do bosque, por entre riachos e nevoeiro. A certa altura comentei com os homens que já não estávamos ali a fazer nada, Keith olhou-me de lado e jurou não parar de procurar o filho, nem que fosse sozinho. Mal sabia ele que iríamos ser interrompidos muito em breve. Por entre o breu do bosque começámos a ouvir ruídos, um estalar aqui e ali, uma respiração ofegante, um cheiro muito activo. Subitamente fomos atacados, suponho que por lobos, começámos a disparar em várias direcções, Keith atirou-se para o chão com as mão sobre a cabeça. Após uma série de tiros parámos, já nada se ouvia. Na escuridão do bosque apontámos as lanternas para tentar perceber se todos estavam bem, havia um homem no chão. Renascer não é estar preparado para tudo, eu estava literalmente a tremer, conseguia ver apenas uns metros à minha frente, ao meu lado estava um homem tombado, à minha frente um outro vomitava em pânico total. Olhei em todas as direções apontando freneticamente com a lanterna, foram segundos que pareceram minutos. Vi então, com estes olhos renascidos, uma criança. Era Killian, estava nu, pálido. A seu lado o maior lobo que alguma vez vi, eram mesmo lobos. Atrás de mim ouvi a culatra de uma arma, um tiro, e Killian caiu. Os olhos de Keith, não há palavras para descrever. Por instinto corri para a criança mas era tarde demais, o lobo carregou contra nós e com ele muitos mais lobos. Lembro-me de correr, mudar de direcção e subitamente ser puxado por um braço. O que me puxava era o inicio de um novo ciclo, um lobo que me queria tombar. Ainda consegui ver o resto do grupo, completamente em pânico já no chão, gritos no meio de lobos agora tingidos de vermelho sangue. Eu ainda me tentei levantar, esgravatei na terra molhada mas foi completamente inútil, ser renascido não é estar preparado para tudo. Não há nada que nos prepare para um lobo que nos tenta abrir a traqueia. Morri com olhos nos olhos de uma fera, foi o fim daquele ciclo, nunca cheguei a saber o que se passou depois. Aprendi, contudo, uma preciosa lição. Há mais neste mundo que somente o céu e a terra, se há renascidos, há certamente muito mais. Lembre-se disto, pois será útil na compreensão das minhas próximas palavras.