quarta-feira, dezembro 11

A Primeira Verdade - Parte II

Enfim, deixe que lhe conte sobre o ciclo seguinte. Seguinte...será que foi mesmo o seguinte? Na verdade, não é possível criar uma linha cronológica para os ciclos. O dia em que tomamos consciência de quem somos marca o momento em que começamos a ser bombardeados com uma enorme torrente de informação. Sinceramente já não consigo dizer o que vi primeiro, se a queda de grandes impérios ou a queda dos preços do supermercado da esquina. Ainda hoje, quando penso profundamente em quem sou, chego à conclusão que deve haver no mundo grandes fenómenos. Coisas completamente fora da explicação racional. Se há renascidos, poderá também haver vampiros e criaturas fantásticas? 

Já fiz de tudo na vida, podemos dizer que também já estive por todo o lado. Com o tempo vim a perceber que, talvez, tudo seja possível. A certa altura da minha infindável vida, fui chefe de esquadra numa pequena aldeia ou cidade, a verdade é que já não me recordo. Até o nome me escapa, acho que era Freshford ou algo que o valha. Neste ciclo fui baptizado de Walter Smith Morris, mas todos me chamavam Morris, Chefe Morris na altura dos eventos que vou relatar. Não há nada de especial a apontar, sempre fui um individuo calmo, mesmo depois de tomar consciência após os meus dezassete anos. Este dom que temos mudou-me a vida, comecei a interessar-me por história, passava dias a fio na biblioteca. Acho que no fundo me tentava encontrar em acontecimentos históricos. Sempre quis ficar por Freshford, sempre quis ficar junto dos meus, acabei por ficar no sitio que me permitia olhar pela minha terra e pela minha gente. Não tive filhos ou fui casado, pode dizer-se que era um lobo solitário. Herdei uma quinta a cinco quilómetros da esquadra, não me posso queixar, os meus pais deixaram-me tudo o que podia assegurar uma vida tranquila.

Esta tranquilidade pode dizer-se que existia apenas à superfície, tornei-me um observador de pessoas, inconscientemente procurava mais renascidos. Talvez isto seja fruto da solidão, ou vice-versa, nunca me consegui aproximar de uma mulher. Durante este ciclo, tudo me pareceu infrutífero, para quê fazer uma vida se mais tarde tudo isto será atirado para uma trituradora cósmica? Infrutífero certamente. Dediquei anos da minha vida aos livros, história sobretudo, esta é a informação que para mim é pertinente. Por diversão lia também muito sobre o sobrenatural e supostos fenómenos, afinal se eu mesmo sou um fenómeno deve haver algo mais por ai. O que lhe vou contar ilustra isto mesmo. Devemos manter a nossa mente aberta, há mais para além do céu e da terra. 

Certa noite, já passava da meia noite acho eu, fui chamado a uma casa nos arredores de Freshford. Falei ao telefone com um senhor Keith Lowland, que por entre gritos e lágrimas exigia a minha presença para procurar o seu filho. Os detalhes não eram claros e a conversa pelo telefone era quase impossível devido ao estado deste senhor. Saí da esquadra e fiz-me ao caminho. Ao chegar fui recebido por Keith e Faye, um casal cujo filho tinha desaparecido no bosque. Avisei o casal Lowland que dada a hora, a visibilidade e o facto de haver lobos no bosque das traseiras da casa, seria difícil encontrar o seu filho Killian. Para ser honesto pensei que o miúdo tivesse renascido naquele momento. Quem sabe? Poderia ter fugido em pânico após o renascimento. Nunca saberemos se foi ou não, na verdade penso neste tipo de coisas a toda a hora sempre que vejo alguma notícia trágica. Mas continuemos. Foi uma confusão, a mãe alucinava que tinha visto o miúdo nu no bosque, depois chegou mais gente, havia um grupo de populares que queriam ajudar. Ordenei que a levassem dali, a senhora não estava em si. Na multidão avistei um vizinho meu, William Goldlock ou Godlard ou sei lá, experiente caçador e homem de meia idade como eu. Resolvi liderar a busca com Keith e Will, mas não tardou muito até que fossemos chamados na direcção oposta do caminho que havíamos tomado. Abandonámos o grupo em que seguíamos e corremos na direcção de um grito, era o caminho que Faye havia tomado com três homens que participavam na busca, acho que um deles até era policia, já não me recordo bem. Quando demos com ela demos também com os corpos dos três homens. Estavam no chão, jaziam numa poça comum de sangue. Pareciam ter sido atacados por animais, lobos, segundo Will. Faye afirmava que tinha sido ao miúdo a fazer aquilo, seria possível? Dadas as circunstancias, comuniquei a pedir apoio médico, tínhamos três cadáveres e a noite podia não acabar por ali. Pensei imediatamente num lobisomem, algo inédito em tantos ciclos vividos, a sensação de algo novo foi para mim uma injecção de adrenalina.

Continuámos as buscas, desta vez armados com caçadeiras. Andámos bastante no negrume do bosque, por entre riachos e nevoeiro. A certa altura comentei com os homens que já não estávamos ali a fazer nada, Keith olhou-me de lado e jurou não parar de procurar o filho, nem que fosse sozinho. Mal sabia ele que iríamos ser interrompidos muito em breve. Por entre o breu do bosque começámos a ouvir ruídos, um estalar aqui e ali, uma respiração ofegante, um cheiro muito activo. Subitamente fomos atacados, suponho que por lobos, começámos a disparar em várias direcções, Keith atirou-se para o chão com as mão sobre a cabeça. Após uma série de tiros parámos, já nada se ouvia. Na escuridão do bosque apontámos as lanternas para tentar perceber se todos estavam bem, havia um homem no chão. Renascer não é estar preparado para tudo, eu estava literalmente a tremer, conseguia ver apenas uns metros à minha frente, ao meu lado estava um homem tombado, à minha frente um outro vomitava em pânico total. Olhei em todas as direções apontando freneticamente com a lanterna, foram segundos que pareceram minutos. Vi então, com estes olhos renascidos, uma criança. Era Killian, estava nu, pálido. A seu lado o maior lobo que alguma vez vi, eram mesmo lobos. Atrás de mim ouvi a culatra de uma arma, um tiro, e Killian caiu. Os olhos de Keith, não há palavras para descrever. Por instinto corri para a criança mas era tarde demais, o lobo carregou contra nós e com ele muitos mais lobos. Lembro-me de correr, mudar de direcção e subitamente ser puxado por um braço. O que me puxava era o inicio de um novo ciclo, um lobo que me queria tombar. Ainda consegui ver o resto do grupo, completamente em pânico já no chão, gritos no meio de lobos agora tingidos de vermelho sangue. Eu ainda me tentei levantar, esgravatei na terra molhada mas foi completamente inútil, ser renascido não é estar preparado para tudo. Não há nada que nos prepare para um lobo que nos tenta abrir a traqueia. Morri com olhos nos olhos de uma fera, foi o fim daquele ciclo, nunca cheguei a saber o que se passou depois. Aprendi, contudo, uma preciosa lição. Há mais neste mundo que somente o céu e a terra, se há renascidos, há certamente muito mais. Lembre-se disto, pois será útil na compreensão das minhas próximas palavras.

quarta-feira, novembro 27

A Primeira Verdade - Parte I

Não foi dor o que senti, foi como se o meu peito quisesse implodir, não era dor mas já sabia o que me estava a acontecer.
O meu nome era Artur Teodoro Marques, outrora um grande médico, mas naquele dia era eu o paciente. Estava a morrer de um enfarte agudo no miocárdio, mais conhecido por ataque cardíaco. Não custou muito, não senti dor, apenas aquela pressão sufocante que levou o meu último suspiro.
Ao fechar os olhos para morrer tive, naquele dia, o que me pareceu ser uma alucinação, estava a nascer de novo.
Desculpe-me se isto está a parecer muito confuso e algo surrealista mas por muito ridículo que possa parecer não estou a falar por metáforas. Realmente morri naquele dia e o que me pareceu uma alucinação era mesmo real, eu nasci de novo, foi como se tivesse uma segunda oportunidade, eu que sempre fui ateu e nunca um cidadão exemplar. Este fenómeno marcou o fim e também o inicio de mais um ciclo de reencarnação. O estranho é que eu já não estava em 2001, nem anos ou séculos depois mas sim no século VIII na Bretania. Não me lembro do dia em que nasci, apenas tenho uns flashbacks, na verdade até aos meus dezasseis anos nesse ciclo tudo me pareceu um sonho, uma mistura de hoje e ontem. É difícil de explicar. Já estou a enrolar tudo de novo. Comecemos do início.

Hoje o meu nome não é importante, já tive muitos, é apenas um rótulo. Eu sou um Renascido, já voltarei ao conceito, por agora deixe-me explicar o resto.
A vida que nós conhecemos não tem um princípio, meio e fim. Todos nós reencarnamos, no entanto o conceito de reencarnação não é o apropriado. Na verdade o que realmente acontece é que a nossa essência, alma, espírito, chamem-lhe o que quiserem, viaja de época para época, de trás para a frente, de forma aparentemente aleatória. Chama-se a cada vida passada um ciclo. O Renascido é aquele que consegue transportar de um ciclo para o outro toda a informação e experiências que viveu no ciclo anterior. A informação que transportamos para o ciclo seguinte só nos é revelada, na totalidade, quando somos emocionalmente e intelectualmente maduros, entre os dezasseis e os dezoito anos, umas vezes mais cedo outra mais tarde.
Ao Renascido é-lhe imposta uma regra, não pode revelar nenhuma das Três Verdades, são elas: O nosso propósito, quem somos, o que vai acontecer. Nenhuma destas verdades pode ser revelada aos Adormecidos, aqueles que não são Renascidos ainda. A segunda e terceira verdades são óbvias entre Renascidos, no entanto não falamos delas, mesmo entre nós. A verdade que procuramos é a primeira, saber o nosso propósito. Quantas vezes já ouvimos dizer, que a grande pergunta é saber o que estamos cá a fazer?
Há no entanto forma de contornar as regras, há como revelar as verdades, mas há que saber como o fazer. Podem ser dadas pistas através de várias formas, as mais comuns são as formas de arte. A segunda verdade normalmente não é de grande interesse para os Adormecidos, pois por muito fértil que seja a imaginação humana, esta nunca é levada muito a sério. É normalmente confundida com mitos, superstições ou crenças. A terceira verdade é fácil de revelar, através dos famosos adivinhos e cartomantes. A primeira verdade é aquela que todos procuramos, poucos a encontram, é sem dúvida a mais difícil de contornar mas no entanto nada é impossível. Revelar uma verdade de forma directa tem a derradeira consequência, o apagar da nossa essência, para sempre.

Agora que já lhe dei os alicerces vou retomar a minha estória.
O ciclo que revivi foi como uma lenda ou conto de fadas, se até agora não acredita em tudo aquilo que lhe estou a dizer, vai achar que estou doente e que sofro de esquizofrenia ao ouvir o que se segue.
O meu nome era Arthur, vivia com o meu tio já idoso que temia morrer e deixar-me só. Para poder garantir a minha educação e subsistência resolveu arranjar-me um tutor.
Tinha os meus catorze anos e não estava completamente renascido, recordo-me que o pobre do meu tio não realizou o seu desejo, morreu antes de me arranjar um tutor. Lembro-me que apesar de tudo tive sorte pois passados uns dias encontrei um velho que apesar da idade parecia muito saudável, era sem duvida a pessoa mais velha que tinha visto e no entanto era como se tivesse vinte anos. Nesse Ciclo recordo-me que era muito religioso devido a experiências passadas. Comecei a acreditar que Deus me tinha dado uma segunda hipótese e que naquele dia me havia ajudado a encontrar aquele velho. Durante dois anos fui filho, aluno, e ajudante desta pessoa que nunca me revelara nada da sua vida nem tão pouco o seu nome. Tratava-o apenas por Senhor. Foi nesse ano que renasci por completo, não é algo que aconteça de um dia para o outro. Vamos ganhando consciência, não nos assusta saber que já vivemos outra vida. O que outrora seria extraordinário era agora banal, o importante era continuar.
Devo muito a este homem sábio, ensinou-me coisas que não eram daquela época, coisas que me levaram a pensar se não era ele um viajante como eu. Este meu tutor, se assim quiserem chamar-lhe, enchia-me a cabeça com perguntas difíceis, adivinhas sem nexo e tarefas absurdas. Afirmava que eu era especial, mas que não era o único. 

Após algum tempo resolvi revelar o meu segredo, sem sucesso pois fui silenciado pelo meu tutor. Como se tivesse consciência do que lhe queria transmitir colocou o seu dedo sobre os meus lábios, fechou os olhos e acenando com a cabeça disse “eu disse que não eras único”. Nesse dia fiquei a saber, juntando as suas palavras aos jogos mentais e a todas as perguntas de que era alvo. Sabia agora o que era ser Renascido, sabia que também ele o era, sabia das Três Verdades. Tinha agora conhecimento das duas últimas verdades e ansiava por saber a que estava em falta. Nesse dia o meu tutor confiou-me o seu nome, chamava-se Merlin. Uma tempestade de pensamentos confusos invadiu a minha mente. Se era Merlin e eu me chamava Arthur quereria isto dizer que eu era O Rei Arthur? O lendário Rei Arthur? Seria mesmo isso? Passaram-se dias e por cada um que passava tudo era mais nítido. A curiosidade de saber o que estava para acontecer era mais forte que eu, comecei a fazer muitas perguntas, perguntas a mais, nenhuma sobre aquilo que éramos, sobre isso estava bem esclarecido, mas sim sobre a lenda do Rei Arthur. Certo dia em que passeávamos pela floresta, perto de uma pequena vila, mencionei mais uma vez a lenda do Rei Arthur, falei na espada Excalibur e subitamente fui fitado pelos olhos de Merlin. “Diz-me, o que nasceu primeiro, a galinha ou o ovo?”. De imediato pensei nas velhas perguntas que me fizera enquanto criança mas depois percebi o que realmente queria dizer, eu estava ali para cumprir algo, a lenda aconteceu, ia acontecer e estava a acontecer. Esta era mais uma forma de contornar a regra e relevar, de uma certa forma as Três Verdades, não só aos Renascidos mas também aos Adormecidos. Nesse dia, durante uma caminhada na floresta, e após esse pequeno diálogo, Merlin levou-me até uma clareira. No centro havia um manto que aparentemente cobria algo. Merlin agarrou este manto e revelou a lendária Excalibur cravada numa pedra revestida a musgo. Devo dizer que não fiquei muito impressionado, era uma espada normal, com pouca ou quase nenhuma decoração apenas a forma cruciforme em metal bastante polido com um punho preto que era bastante ergonómico. Estava suja, e havia algum musgo a querer subir pela lâmina. Merlin pediu-me que retirasse Excalibur da sua prisão e eu, sabendo a minha condição, nem pensei duas vezes. Empunhei a espada mas não a consegui mover. Merlin riu-se e de uma forma sarcástica, levantou a voz e perguntou-me se não era eu o lendário Rei Arthur. Aquele riso irritou-me de tal forma que saltei para cima da pedra e tentei mover a espada com as duas mãos, por entre suor e grunhidos nada aconteceu mas estava decidido e não ia sair dali sem aquela espada. Minutos depois uma multidão de gente estava ali reunida, rindo-se do meu esforço. Lenhadores, ferreiros, crianças e até mulheres da povoação vizinha. Todos pareciam já ter tentado mover a espada, para eles eu era só mais um parvo a cair na piada mais conhecida do reino. Foi quando sai da pedra para desistir que Merlin me segredou ao ouvido. “Basta carregar na saliência que está na guarda da espada”. De seguida, virei-me para pedra, olhei bem para o punho e guarda da espada, notei que tinha uma pequena saliência que passava facilmente por decoração. Olhei em redor para aquela multidão e logo de seguida para Merlin. Percebi o que ele queria. A sua intenção era que as pessoas me vissem a retirar Excalibur, para que me considerassem o seu rei, como na lenda. Foi então que encarei Excalibur, avancei com um passo pomposo, empunhei-a e pressionei a saliência que fez sair um raio de electricidade pela lâmina libertando-a assim da pedra. Levantei a espada o mais alto que consegui no meio de caras de espanto, era surpreendentemente leve, os raios de sol que passavam por entre a copa das árvores faziam a lâmina brilhar. Naquele dia fui coroado rei, naquele dia eu fiquei conhecido como Rei Arthur, o lendário Rei Arthur.
O resto da estória penso que todos já sabemos, o que não sabe é que o Santo Graal era mais uma pista sobre a primeira verdade e que Merlin fraquejou. Merlin, bem...Merlin tinha mais de mil ciclos e sabia a primeira verdade quase desde o inicio. Não conseguindo viver com a frustração de não a poder revelar, certa noite quebrou a regra, mas isso é outra história. Enfim, deixe que lhe conte sobre o ciclo seguinte.

segunda-feira, maio 16

O Dom da Palavra

“Um homem consegue mudar o mundo com uma bala no sítio certo.” É tão verdade como “um homem consegue mudar o mundo com a palavra certa”, no entanto a força da palavra é facilmente parada com 7,62 x 51 mm de chumbo.


Um projéctil 7,62 voa a 850 metros por segundo, isto se tiver a carga exacta e o projéctil não for defeituoso, claro que não falo nas munições russas, aliás eu só confio nas munições feitas for mim. Para executar um tiro não basta premir o gatilho, existe um extenso ritual que se faz e que requer algum tipo de preparação. Por exemplo, eu consigo suster a respiração por dez minutos, isto quer dizer que com treino consegui baixar o meu ritmo cardíaco a níveis bradicardíacos. Para que serve isso? São precisos segundos para premir um gatilho mas até chegar essa altura podem passar minutos. Através de uma mira telescópica é mais difícil identificar o alvo, porque a janela é mais pequena e por causa da ampliação, o timing é a chave de tudo. Até soltar o chumbo o atirador é um maestro de uma orquestra em que nenhum instrumento deve falhar.

Nasci com uma infecção pulmonar e com poucas defesas no organismo, isto pode parecer uma coisa negativa mas vejamos o seguinte. Devido à infecção pulmonar tive que fazer fisioterapia, isto consistia em vários exercícios que obrigaram a minha caixa toráxica a abrir e a que os meus pulmões ficassem com mais volume. A falta de defesas deixavam-me várias vezes doente, isso fez com que o meu corpo se habituasse à doença, como é que isso pode ser bom? Bem, quando estou doente o meu corpo responde da mesma forma e posso contar com ele da mesma forma. Nasci também com tinnitus, um zumbido nos ouvidos. Após várias análises não encontraram nada no meu ouvido médio e interno, ou seja, não sabem a razão. A verdade é que o tinnitus me ajuda na audição pois o zumbido é uma fronteira que detecta qualquer registo, seja mais grave ou agudo. Qualquer som que não seja o zumbido é claro que nem água. A minha visão também não é das melhores, sou daltónico, ou melhor, tenho dicromacia deuteranopia, uma deficiência que me impede de ver a cor verde. A minha forma de daltonismo, para além de me impedir de ver as cores como elas são, tem uma vantagem. Eu consigo ver melhor as formas e as modelações dos tons, o que é óptimo para um atirador. Resumindo, todas as minhas deficiências são as minhas melhores qualidades pois fazem de mim um ser prefeito dentro do que é imperfeito para o comum mortal.

Já estou aqui há dias, demorei uma semana a escolher este sitio, a medir temperaturas e pressões atmosféricas, verifiquei registos topográficos e analisei todo o terreno. Este é sem dúvida um bom lugar, um pouco longe, mas um bom lugar. Já detectei o alvo, mas como disse existem factores que me impedem de disparar logo. Tenho que ocultar o som da minha M24A2, tenho que avaliar a temperatura para corrigir a mira, tenho que verificar o vento ao longo do trajecto. O cano da minha M24A2 força o projéctil a uma rotação dextrosum, ou seja, no sentido dos ponteiros do relógio. Isto quer dizer que ventos da direita para a esquerda fazem com que o tiro suba e vá para a favor do vento. Ventos da esquerda para a direita fazem o projéctil descer a favor do vento. Em suma, o momento exacto requer um conjunto de factores que nem sempre alinham.
Depois de identificar o meu alvo é preciso corrigir a mira e manter 80% de oxigénio nos meus pulmões. Chega a altura certa. O sino da torre da catedral toca três vezes, a primeira badalada marca o inicio, a segunda ajuda-me a perceber o ritmo e a prever a terceira e eis que esta chega. Forço o percutor a picar a escorva da munição que faz explodir a carga e libertar o projéctil. Este voa e demora 1,09 segundos a atingir o alvo. Este é atingido no bolbo raquidiano, um tiro que entra um pouco abaixo da linha dos olhos e sai pela nuca.

A confusão e o caos só vem depois de uns segundos, o público que estava a ouvir o patriarca religioso não se apercebe do sucedido, na verdade nem mesmo os que estavam no pódio.

Morre assim um símbolo que usava palavras para mudar o mundo. Eu usei uma bala. A minha existência podia ser a prova de que algo me fez assim, perfeito para o serviço que acabo de executar, mas se isso fosse mais do que uma coincidência então acabei de cometer o maior erro da humanidade. O que penso eu sobre isto? Nada, não sou pago para pensar.

sábado, dezembro 4

Tudo o que lhe resta

Passo ante passo arrasta o seu andar deambulante pela rua. Oscila e encosta-se a uma parede, nos seus olhos o vazio da repetição, da memória violenta e insistente. Imagens que se abatem num incessante ritmo frenético, que lhe condicionam o discernimento.

Gosto de passear ao fim da tarde, as ruas ficam com um tom laranja tão bonito. Caminho sozinha, não há ninguém. Nem uma pessoa olha para mim, os olhos não se fixam na minha figura. Caminho, deambulo, os meus olhos vagueiam pelas paredes. Não os encontro mas sei quem são. Foi ali naquela casa, estas escadas, à porta fechada. Foi nesta mesa, nesta parede, neste chão. Foi aqui que me perdi, aqui que me quebraram. Foi ali ao canto onde me deixaram, sozinha, incrédula, por entre lágrimas e insultos. Ainda tenho as mãos na parede, as unhas cravadas neste chão. Os vómitos não cessam, esta dor, este momento, aquele momento em que passei a fazer parte de tudo o que aqui está.

Desceu as escadas deixando pegadas que ninguém pode apagar, encostada à parede soluçou entre degraus e saiu lentamente. Atrás de si a porta fechava-se em silêncio, sem fechadura, sem força.

Não suporto dias de aulas, passo por grupos de pessoas que me ignoram. Olham para mim pelo canto do olho, por entre vultos negros vejo o brilho dos seus olhos. As caras, as feições, imagens que não pertencem a este mundo. Por entre risos e dedos apontados ignoram-me como se não fosse nada. Procuro-os na multidão, vejo traços familiares por entre estas pessoas mas a minha busca não tem resultados. Só me resta sair, deambular, tentar encontrar aquela casa outra vez.Vou entrar, vou ver, eu estou lá e estou aqui, deixei lá um pedaço de mim.

Mais uma vez, dia após dia deambula pelas ruelas da cidade. Ao fim da tarde é a única figura banhada pelos raios ténues do sol tardio. Por entre vómitos, por entre lágrimas, por entre memórias. Ninguém sabe, ninguém suspeita de nada, mas também ninguém quer saber.

Que cara é esta? Quem é esta pessoa que ainda agora passou por mim? Como ousas? Nem olhaste, mas eu sei quem és. E vou, vou até à casa, lentamente faço o meu caminho por entre ruas e ruelas, por entre o laranja tão bonito que se abate sobre a cidade. Sei o caminho de cor, sinto o caminho de cor, estou à porta da casa e não consigo parar de tremer.

Dos seus grandes olhos azuis resta apenas um cinzento claro, a face transfigurada, marcada, conspurcada. Decidida estende a frágil mão para empurrar a porta.

Vou entrar, tenho que os ver, vou subir. Devagar...Ouço risos atrás da porta, risos? Risos nesta sala onde estou, onde vou entrar. Neste local que está na minha cabeça, parte de mim neste corpo. Não há lugar para risos ao fundo desta escada.

Abriu a porta decadente e deu de caras com quem tanto queria ver,  expressões de puro horror, de surpresa, de medo. Vultos que agora se revelam frágeis e vulneráveis.

Não fujas enquanto olho para ti, não grites enquanto me conheces. Essa parede, essa mesa, esse chão. Tu não podes sair, não podes fugir. Não implores enquanto te toco, não grites enquanto te espalho pelas paredes. Esses olhos, a tua cara, nada. A tua expressão, a minha expressão, olha para mim enquanto te recordas de quem sou. Enquanto saboreias quem vais ser. Não podem fugir, não conseguem rastejar e tudo o que vos resta são as minhas mãos. As mãos que vos desconsertam, que vos separam, que vos arrastam de dentro para fora numa chuva momentânea para nunca mais poder haver alguém como eu. E por fim, só nós os dois e a luz que passa pela janela. Por entre partículas, iluminados em tons de laranja, rodeados por tudo o que sou e fui, por tudo o que eram e são agora. E tu que agora rastejas e foges deste corpo débil, tu que neste segundo foste espalhado neste espaço, tu que não és ninguém. Tu que tanto me fizeste, todos se resumem a nada.

Cambaleou escadas a baixo, abriu a porta e sentou-se no degrau que dava para a rua. As suas pegadas eram visíveis na escada. Permaneceu encostada à parede, sentada, inerte. Os olhos quase esbatidos, as unhas encardidas em tons escarlate. A pele manchada, suja. A casa, decadente, banhada pelo sol quase extinto. As janelas adornadas em pequenos fragmentos de todos os tamanhos. Na rua uma multidão de caras ocultas comenta, observa, aponta o dedo para a rapariga que está sentada. A vida esvai-se por um fio que lhe escorre pela perna, a sua face está serena e distante. Ao fundo da rua o sol desaparece, o laranja dá lugar à escuridão. Com o cair da noite a multidão dispersa, os cabelos ondulam ao vento e finalmente a completa escuridão instala-se. Não lhe resta nada.

quinta-feira, outubro 7

Fenrir VII - Conclusão

Sentada no chão da floresta e envolta pelo nevoeiro Faye ouvia um grunhir profundo que se aproximava. “Está ai alguém? Killian, és tu?” disse Faye, de seguida ouviu-se um uivo e como se de um terramoto se tratasse segui-se um “galopar” que afastou e levou o nevoeiro. Faye tremia quando os outros homens, juntamente com Keith, a encontraram junto dos dos três corpos. Estava pálida, contrastava com a poça de sangue onde estava trémula e sem palavras. “ Faye o que é que se passou aqui? FAYE?” ,perguntou Keith sem obter qualquer resposta. “Faye, diz qualquer coisa.” – “Keith…foi…o teu…o nosso…um lobo, foi um lobo” ,respondeu Faye desmanchando-se em lágrimas. “ Keith isto está a ficar perigoso, o nevoeiro levantou mas há lobos à solta! Não sei como dizer isto mas o vosso filho…”-“O meu filho está vivo Morris, deixa-te de merdas. Se não me vão ajudar dá-me a tua pistola, eu vou à procura dele.” ,respondeu Keith sem deixar que o chefe da policia acabasse de falar. “Calma amigo, eu quero e vou-te ajudar. Mike reúne o pessoal e armem-se com as caçadeiras, a noite promete.” ,disse Morris enquanto punha a caçadeira ao ombro.

Enquanto os policias se ocupavam dos corpos e de se agruparem para um briefing, Faye murmurava baixinho uma canção que cantava a Killian, os seus olhos carregados de lágrimas olhavam para o vazio da floresta. “Amor, vai correr tudo bem…”-“Não Keith, não vai, por favor não deixes que matem o nosso filho.” ,disse Faye. “Por que raio matariam eles o nosso filho Faye? Estás a esconder-me algo, CONTA-ME MULHER!” - “Eu não vi nada mas eu senti Keith, eu senti o nosso filho nosso filho Keith o nosso filho…ele matou aqueles homens!” ,disse Faye voltando a chorar. “Não é possível, não pode ser. Há dentadas de lobo naqueles corpos.” ,respondeu Keith como se estivesse num monólogo. – “Keith, os homens estão preparados, vamos assim que quiseres.” disse Morris. “Sim…ok Morris, vamos já.”Respondeu Keith ainda atrapalhado com aquilo que a sua esposa lhe dissera. – “Faye, vai tudo correr bem, estou certo que isto não é obra do nosso filho.”

A noite já ia a meio e não havia sinais nem de Killian nem de lobos, Morris e os seus homens bocejavam e comentavam entre si que já não estavam a fazer nada ali. “Keith, não quero ser pessimista mas já andamos aqui há horas e não há sinais do teu filho, lamento imenso rapaz.” ,disse o chefe da polícia num tom paternal. -“Eu não vou parar Morris, não vou descansar até encontrar o corpo do meu filho.”Subitamente ouviu-se um uivo, não estava muito distante, na verdade estava tão perto que os homens outrora sonolentos empunhavam agora as suas armas num sobressalto. “Mas que raio” disse um dos homens. A copa das árvores escondia o luar, estava tão escuro que o fraco feixe de luz emendado pelas lanternas parecia ridículo. -“Há qualquer coisa aqui chefe.” ,disse Mike um pouco preocupado. “Cheira a pelo de cão molhado” no instante que Joan, um dos homens do grupo, disse isto ouviu-se um coro de gritos humanos e grunhidos animalescos. Morris e os seus homens começaram a disparar em todas as direcções, Keith atirou-se para o chão com as mãos por cima da cabeça. Quando aquele pandemónio terminou Morris chamou os seu homens um por um “Mike, Joan, Felix, Roger estão todos bem?” todos responderam menos Joan. “Joan, JOAN onde estás?” ,gritou Mike. “Oh meu Deus, está aqui um braço…é o braço do Jo…” disse um dos homens começando a vomitar.

O pânico instalou-se, agitados apontavam as suas lanternas em todas as direcções, o tapetum lucidum dos olhos canídeos reflectiam a luz e sinalizavam a presença lupina duma alcateia de grandes proporções. Entre eles uma forma esguia, pálida e nua erguia-se no seu bipedismo. Era Killian, do seu lado direito um grande lobo ,que lembrava Fenrir permanecia calmo, contrariamente aos seus irmãos e até mesmo a Killian que rosnava como um igual. “KILLIAN!” ,gritou Keith. O Lobo alpha que se assemelhava com Fenrir olhou para Killian, Keith observava perplexo, não sabia o que estava a passar. Nisto, por detrás dos homens ouviu-se um tiro e Killian foi atingido no peito. “NÃO!” ,gritou Keith. “Meu Deus, eu queria acertar no lobo, desculpem!” ,disse Mike. Em segundos a alcateia carregou para cima dos homens e em minutos estavam todos mortos. Todos menos Keith que enquanto a carnificina durava foi ter com o seu filho. Este estava a ser lambido pelo lobo alpha, o animal olhou para Keith e baixou a cabeça como se de um sinal de aprovação se tratasse. Keith agarrou no seu filho e disse por entre lágrimas -“Eu disse à tua mãe que te ia levar vivo, eu prometi-lhe que tudo ia correr bem.” Num último suspiro uma voz rouca e gasta disse - “Não Chora.”

sábado, setembro 18

Fenrir - VI

Faye cambaleou, deu alguns passos até a uma grande árvore que se erguia no meio da floresta. Encostou-se, com as costas contra o tronco e escorregou até ficar sentada no chão. Na sua mente a imagem de Killian, esguio, ágil, demoníaco com a luz a banhar o seu corpo. Com uma expressão que não conhecia, com uns olhos animalescos, as mãos como garras, o corpo numa posição estranha. Passavam-lhe pela cabeça todo o tipo de perguntas, escorria-lhe pela face um rio de lágrimas. "Faye!", gritava uma voz por de trás da penumbra da floresta. Uma figura aproximava-se a grande velocidade, seguida por mais figuras que também gritavam o nome de Faye. Surgiram do nevoeiro espesso que se erguera, "Faye, estás bem?". Faye olhou para Keith, escorriam-lhe lágrimas, tremia em desespero. "Ele já não é o nosso filho, Keith o nosso filho morreu." Keith agarrou na sua mulher, levantou-a agarrando-a num abraço sentido. Encostou a boca à sua cabeça e perguntou-lhe o que queria dizer com aquilo.

"Eu vi-o, ele esteve aqui mas não era ele, estava pálido, com uns olhos que não são dele. Ele correu para longe, e estava com um lobo. Fugiram os dois, mas o nosso filho não estava ali, ele nem veio ter comigo. Keith, não me estou a sentir nada bem..." As pessoas que estavam com Keith ouviram a conversa, olhavam umas para as outras, ouviam-se pequenos comentários sobre Killian. "Deixem-se disso!" gritou Keith, "estão aqui para isso? não me parece! Levem-na para casa, o resto vem comigo e vamos encontrar o meu filho". Um homem de meia idade chegou-se à frente, era o chefe da esquadra da policia. "Keith tem calma, estamos aqui para ajudar, mas tem atenção ao que dizes. Ainda nem passaram vinte e quatro e já tens uma equipa de busca. Mostra alguma gratidão e trata estas pessoas com respeito. "Tens razão Morris, pede que a levem por favor, e vamos continuar."

Três das pessoas da equipa de buscas levaram Faye para casa embrulhada num cobertor, caminharam até desaparecer na bruma da floresta. O resto do grupo continuou em frente, Keith e Morris lideravam o grupo, com eles ia também Will, um caçador experiente que fazia de batedor nesta busca. Will observava o caminho com uma lanterna, "passaram por aqui", dizia afastando um arbusto. Conforme se embrenhavam mais e mais na floresta o nevoeiro ia ficando mais espesso. A lua brilhava no céu estrelado, a sua luz iluminava o nevoeiro e tornava o caminho mais difícil. "Lembrem-se, todas as lanternas ligadas, se for preciso ponham a mão no ombro do vosso companheiro do lado, não se separem.", dizia Will em voz alta. Keith estava extremamente focado, queria encontrar o filho a todo o custo, as palavras de Faye não lhe saiam da cabeça. Onde estava Killian? Que história era esta de não ser o filho deles?

Faye caminhava no sentido oposto da equipa de buscas, acompanhada por três homens trilhava um caminho pouco evidente. "Mais devagar", dizia Faye tropeçando num galho. Dois dos homens eram seus vizinhos, o terceiro era policia. "Temos que nos despachar, se o nevoeiro fica mais denso não vamos conseguir chegar aos carros!" disse o policia pondo a mão nas costas de Faye e empurrando-a com um gesto menos cuidado. Faye tropeçou mais uma vez e caiu de joelhos deixando um dos sapatos para trás. Quando os seus joelhos tocaram no chão ouviu-se um segundo impacto e o homem que lhe tinha respondido caiu no chão. Estava inanimado, a sua cabeça não passava de uma grande poça de sangue. Os outros homens ao ver aquilo começaram a correr deixando Faye prostrada no chão, sozinha no nevoeiro da floresta. Na escuridão havia algo que se movia a grande velocidade, os dois homens caíram ao chão por entre dois sons que faziam lembrar gotas de chuva a cair.

terça-feira, setembro 14

Fenrir - V

Eventualmente a família Lowland ultrapassou o fatídico dia em que Keith perdera a cabeça. Keith admitiu todas as suas falhas, naquele momento pensou em tanta coisa, sentiu tanta confusão e fúria que não conseguiu evitar o que sucedera. Não foi fácil voltar a estabelecer contacto com Killian, apesar de ter ficado apenas umas horas fechado no escuro. O comportamento de Keith tinha deixado marcas muito profundas no seu filho. Faye demorou alguns dias até voltar a dormir com Keith, ficava sempre no sofá da sala a fazer festas no cabelo de Killian que se enroscava como um cachorro a ver televisão até adormecer. O tempo passou, mas Killian nunca esqueceu, se antes havia uma relação difícil entre pais e filho, agora havia uma tensão latente. O casal já dormia junto mas o seu filho não era o mesmo. O casal nunca mais tocou no assunto, os eventos passados permaneceram tabu, enterrados em cada um dos três. Como resultado directo da terrível noite Killian fechou-se ainda mais, agora já não interagia com os cães e não saia do seu quarto, limitava-se a olhar para a floresta pela janela.

Era de noite, quando Faye ouviu os cães latir. Levantou-se da cama e espreitou pela janela do quarto que dava para o jardim. No jardim estavam Freki e Misha num frenesim de uivos e latidos direccionados para o outro lado da cerca. “Chiu, calados…o que é que se passa?” disse Faye abrindo a janela, nesse momento Keith acordou e juntou-se a Faye. “O que é que os cães têm?” perguntou Keith. “Não sei, mas seja o que for é do lado de lá da cerca.”. O dois vestiram os seus robes e foram ao quarto de Killian para ver se este também estava acordado. Assim que abriram a porta repararam que a janela estava aberta, quando olharam para a cama encontraram-na vazia, Killian tinha saído de casa. “Oh não, o meu bebé fugiu…Keith o nosso filho fugiu”- “Calma Faye se calhar foi ter com os cães”.

Desceram as escadas rapidamente e correram em direcção ao jardim, os cães estava exaltados, desorientados, e Killian não se encontrava em nenhum lado. Preocupados telefonaram para a policia para que fosse organizada uma procura, depressa uma multidão de gente apareceu para ajudar. A noite foi passada com ânimos altos, por todo o lado ouvia-se o nome de Killian entoado como um coro de igreja desorganizado. Os Lowland abandonavam a esperança de encontrar o seu filho com vida, com as dificuldades dele era difícil sobreviver na floresta e ainda havia a hipótese de se encontrar com os lobos, temiam pelo pior. “Faye vai dormir, nós vamos continuar mas tu precisas de descansar.” Disse Keith. “A culpa é tua Keith, porque é que lhe bateste? Ele não sabe o que faz.”- “Faye não me lembres disso, achas que não me sinto mal? Tínhamos concordado não falar mais sobre isto! Estou mais que arrependido pelo que fiz e se pudesse voltar a trás eu…eu…”soluçou Keith por entre lágrimas. Faye afastou-se e correu pela floresta a dentro em desespero. Passou algumas árvores, atravessou um arbusto e subitamente parou. À sua frente estava uma figura pálida e nua, era Killian.

A lua cheia mostrava o seu corpo magro mas atlético, os seus músculos era definidos. As corridas e brincadeiras com os seus amigos esculpiram-lhe o corpo. Cara a cara com Killian estava outra figura, num primeiro olhar Faye pensou que fosse Fenrir mas era impossível pois Fenrir estava morto. Faye ficou imóvel e sem reacção, encontrara Killian e este estava acompanhado por um lobo, um lobo adulto de porte considerável. “Killian?” gritou Faye “Killian vem até mim meu filho” continuou estendendo os braços. Killian e o lobo olharam para Faye e depois começaram correr em direcção ao coração da floresta, as duas formas acabaram por ficar ocultas pela sombra lunar dos altos pinheiros e eucaliptos da floresta.

sábado, setembro 11

Fenrir - IV

Keith perdeu a cabeça, correu para o interior da casa e voltou com duas trelas à volta da mão direita. Abriu a porta do quintal com toda a força e saiu de rompante. Agarrou na mangueira, rodou para ter pressão máxima e abriu a torneira. A água saiu disparada, Keith apontou para o filho e para os dois cães que rapidamente dispersaram. No meio da confusão arrancou a correr, com uma das trelas prendeu Misha à casota. Com a outra prendeu Freki, que tentava fugir à volta da árvore. Killian estava de joelhos, não aparentava nenhum comportamento agressivo nem qualquer vontade de reagir. "Keith o que é que tu vais fazer?!", disse Faye entrando no quintal. Keith olhou para ela, em seguida foi em linha recta passo ante passo até Killian. Implacável, levantou a mão direita e com as costas da mesma deu uma bofetada ao filho. Fora a primeira vez, o quebrar de uma das regras que o casal tinha estabelecido. Killian caiu para trás, os cães ladravam e puxavam as trelas mas sem qualquer sucesso de se soltarem. "Keith!", gritou Faye correndo para o filho, "Ele não tem culpa, pára!"

Keith não ouviu, tremia compulsivamente num acesso de raiva que não acabava. "Já vais ver", disse estendendo a mão para o filho. Killian reagiu de imediato, saltou para a frente e cravou os dentes na mão do pai. Keith não reagiu à dor, com a outra mão agarrou nos cabelos do filho que imediatamente o largou. "Keith, larga-o! Só estás a piorar as coisas, pára". Não havia nada que Faye pudesse fazer, Keith tinha uma expressão que não conhecia, não sabia o que esperar, não sabia o que fazer. Estava petrificada com aquela situação. De baixo da lua, os olhos de Keith brilhavam, o resto da cara era apenas escuridão. Como se nada fosse arrastou o filho para dentro de casa puxando-o pelos cabelos, Killian esperneava e fazia todo o tipo de grunhidos enquanto se tentava soltar. Faye não queria acreditar, sem forças caiu de joelhos no quintal, começou a chover.

Keith arrastou o filho pela casa, levou-o escadas a cima, sempre pelos cabelos. Killian cravava as unhas no chão. ainda ensanguentado na boca e no pescoço parecia um animal. Chegaram finalmente ao sótão, Keith abriu a porta com um pontapé e sem sequer olhar para o filho atirou-o lá para dentro. Não acendeu a luz, não disse uma palavra, sem mais atirou o filho para a escuridão. Fechou a porta, deu duas voltas à chave e foi sentar-se no alpendre à porta de casa. Chovia agressivamente lá fora, os cães ladravam, Faye ainda estava no quintal e Killian investia contra a porta uma e outra vez.