sábado, dezembro 4

Tudo o que lhe resta

Passo ante passo arrasta o seu andar deambulante pela rua. Oscila e encosta-se a uma parede, nos seus olhos o vazio da repetição, da memória violenta e insistente. Imagens que se abatem num incessante ritmo frenético, que lhe condicionam o discernimento.

Gosto de passear ao fim da tarde, as ruas ficam com um tom laranja tão bonito. Caminho sozinha, não há ninguém. Nem uma pessoa olha para mim, os olhos não se fixam na minha figura. Caminho, deambulo, os meus olhos vagueiam pelas paredes. Não os encontro mas sei quem são. Foi ali naquela casa, estas escadas, à porta fechada. Foi nesta mesa, nesta parede, neste chão. Foi aqui que me perdi, aqui que me quebraram. Foi ali ao canto onde me deixaram, sozinha, incrédula, por entre lágrimas e insultos. Ainda tenho as mãos na parede, as unhas cravadas neste chão. Os vómitos não cessam, esta dor, este momento, aquele momento em que passei a fazer parte de tudo o que aqui está.

Desceu as escadas deixando pegadas que ninguém pode apagar, encostada à parede soluçou entre degraus e saiu lentamente. Atrás de si a porta fechava-se em silêncio, sem fechadura, sem força.

Não suporto dias de aulas, passo por grupos de pessoas que me ignoram. Olham para mim pelo canto do olho, por entre vultos negros vejo o brilho dos seus olhos. As caras, as feições, imagens que não pertencem a este mundo. Por entre risos e dedos apontados ignoram-me como se não fosse nada. Procuro-os na multidão, vejo traços familiares por entre estas pessoas mas a minha busca não tem resultados. Só me resta sair, deambular, tentar encontrar aquela casa outra vez.Vou entrar, vou ver, eu estou lá e estou aqui, deixei lá um pedaço de mim.

Mais uma vez, dia após dia deambula pelas ruelas da cidade. Ao fim da tarde é a única figura banhada pelos raios ténues do sol tardio. Por entre vómitos, por entre lágrimas, por entre memórias. Ninguém sabe, ninguém suspeita de nada, mas também ninguém quer saber.

Que cara é esta? Quem é esta pessoa que ainda agora passou por mim? Como ousas? Nem olhaste, mas eu sei quem és. E vou, vou até à casa, lentamente faço o meu caminho por entre ruas e ruelas, por entre o laranja tão bonito que se abate sobre a cidade. Sei o caminho de cor, sinto o caminho de cor, estou à porta da casa e não consigo parar de tremer.

Dos seus grandes olhos azuis resta apenas um cinzento claro, a face transfigurada, marcada, conspurcada. Decidida estende a frágil mão para empurrar a porta.

Vou entrar, tenho que os ver, vou subir. Devagar...Ouço risos atrás da porta, risos? Risos nesta sala onde estou, onde vou entrar. Neste local que está na minha cabeça, parte de mim neste corpo. Não há lugar para risos ao fundo desta escada.

Abriu a porta decadente e deu de caras com quem tanto queria ver,  expressões de puro horror, de surpresa, de medo. Vultos que agora se revelam frágeis e vulneráveis.

Não fujas enquanto olho para ti, não grites enquanto me conheces. Essa parede, essa mesa, esse chão. Tu não podes sair, não podes fugir. Não implores enquanto te toco, não grites enquanto te espalho pelas paredes. Esses olhos, a tua cara, nada. A tua expressão, a minha expressão, olha para mim enquanto te recordas de quem sou. Enquanto saboreias quem vais ser. Não podem fugir, não conseguem rastejar e tudo o que vos resta são as minhas mãos. As mãos que vos desconsertam, que vos separam, que vos arrastam de dentro para fora numa chuva momentânea para nunca mais poder haver alguém como eu. E por fim, só nós os dois e a luz que passa pela janela. Por entre partículas, iluminados em tons de laranja, rodeados por tudo o que sou e fui, por tudo o que eram e são agora. E tu que agora rastejas e foges deste corpo débil, tu que neste segundo foste espalhado neste espaço, tu que não és ninguém. Tu que tanto me fizeste, todos se resumem a nada.

Cambaleou escadas a baixo, abriu a porta e sentou-se no degrau que dava para a rua. As suas pegadas eram visíveis na escada. Permaneceu encostada à parede, sentada, inerte. Os olhos quase esbatidos, as unhas encardidas em tons escarlate. A pele manchada, suja. A casa, decadente, banhada pelo sol quase extinto. As janelas adornadas em pequenos fragmentos de todos os tamanhos. Na rua uma multidão de caras ocultas comenta, observa, aponta o dedo para a rapariga que está sentada. A vida esvai-se por um fio que lhe escorre pela perna, a sua face está serena e distante. Ao fundo da rua o sol desaparece, o laranja dá lugar à escuridão. Com o cair da noite a multidão dispersa, os cabelos ondulam ao vento e finalmente a completa escuridão instala-se. Não lhe resta nada.

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