terça-feira, agosto 31

Fenrir - III

Ao acidente seguiu-se todo o aparato que podemos imaginar, Faye foi levada para o hospital por uma ambulância. O condutor do camião foi assistido no local visto que não tinha nenhum ferimento grave. Seguiu-se uma grande confusão visto que o camião destruiu quatro veículos e só parou após embater numa árvore. Killian acompanhou o pai até ao hospital mas teve que ser praticamente arrancado do sítio onde estava. Tremia, tinha os dedos cravados no chão e não queria cooperar. Foi arrastado para o carro pelo pai mas durante a viagem recuperou o seu estado normal. Faye sangrava profusamente da cabeça, aparentemente o seu estado era muito grave mas Keith ouviu os paramédicos a dizer que não era tão grave como parecia. Ficou mais descansado, seguiu a ambulância de perto mas quando chegou ao hospital teve que aguardar algumas horas antes de poder saber o estado da mulher.

Os médicos disseram a Keith que o estado de Faye não era grave e que de momento estava estabilizada. Falaram da situação como sendo um verdadeiro milagre, Faye estava abalada mas tirando o golpe profundo na testa e os hematomas no ombro esquerdo e peito tudo estava bem. Killian acompanhara o pai mas parecia estar alheio à situação. Os seus olhos olhavam em todas as direcções num frenesim, parecia procurar algo mas o seu olhar era vazio. “A sua esposa encontra-se agora em repouso, está medicada e provavelmente não vai ter muita reacção mas acho que podem ir visitá-la.” Disse o médico. “Anda Ki, vamos ver a mamã” disse Keith. Killian levantou-se e começou a caminhar pelo corredor, de uma forma inexplicável o rapaz parecia estar seguro sobre a localização da mãe. Keith ficou espantado porque o seu filho reagira à sua voz. Keith seguiu o médico até à sua esposa, em frente à porta estava Killian que andava em círculos. Keith ficou estupefacto, como é que Killian sabia que a sua mãe estava ali? Quando entraram no quarto Killian entrou à frente do seu pai, dirigiu-se a Faye e encostou a sua cabeça à da mãe e começou a emitir um som que parecia um choro mas não um choro humano. “Pronto filho, a mamã está bem” disse Faye chorando e acariciando a cabeça do filho.

A mãe de Killian estava visivelmente combalida, tinha uma ligadura à volta da cabeça. Eram visíveis algumas manchas de sangue. Falava muito devagar e deixava escapar uma ou outra expressão de dor. Tinha o lábio inferior inchado com algum sangue pisado e o olho do lado esquerdo tinha um derrame bastante evidente. Killian afastou-se e foi para junto da janela do quarto, Keith correu em direcção a Faye e beijou-a na testa, “Não sei o que seria a minha vida sem ti Faye…não me deixes…não nos deixes nunca” disse deixando escapar uma lágrima. “Não chora” ouviu-se no quarto. Faye e Keith olharam um para o outro muito sérios e depois olharam em volta para saber de onde tinha vindo. Era uma voz desconhecida, uma voz de criança mas parecia muito gasta e rouca. Olharam para Killian que continuava a olhar pela janela com a testa encostada ao vidro. “Ki, foste tu que falaste?” perguntou Keith. “Ki fala outra vez para mamã, fala meu amor”-“Calma Faye” disse Keith igualmente exaltado segurando na mão da mulher. Killian virou-se e dirigiu-se para a porta, ficou a olhar fixamente para o puxador que espelhava o interior do quarto numa espécie de globo retorcido. O casal Lowland não sabia como reagir a tudo aquilo, estavam felizes mas queriam mais, o seu filho tinha acabado de comunicar com eles pela primeira vez. Os anos passaram e Killian nunca mais falou, no entanto o seu comportamento era agora mais humano. Killian reagia às vozes do pai e da mãe como se estes o conseguissem controlar, ainda não era uma verdadeira relação de pais e filho mas era um começo. Continuava no entanto com problemas no que tocava a usar certos objectos, interpretar certas situações e sobretudo controlar os seus impulsos.

Os pais achavam que a ligação que Killian tinha com os animais era algo de extraordinário e que de uma certa forma isso o ajudava na sua relação com as pessoas. Por essa razão adquiriram mais um cão, foi a pior decisão que tomaram. O novo membro da família era um Akita Inu albino com três anos, chamaram-lhe Misha. Killian tinha agora dezasseis anos, quando levaram Misha para casa fez exactamente o mesmo que fizera com Freki, a diferença era que Misha tinha uma postura dominante e não levou de forma leviana o facto de Killian lhe tirar a comida. Um dia, o casal Lowland acordou em sobressalto com o ganir e vários ruídos que vinham do jardim. Keith desceu as escadas ainda em pijama e correu em direcção ao jardim. O cenário que encontrou parecia tirado de um filme de terror. Killian encontrava-se junto à árvore, em cima de Misha, o pêlo branco deste estava coberto de sangue assim como a boca de Killian. Keith correu em direcção a esta cena horrível. ”Ki o que se passou?” disse enquanto procurava feridas no corpo do seu filho, “Ki?”gritou Faye quando viu tudo aquilo.”Calma Faye ele não tem nada, o sangue não é dele”, disse Keith espantado. Misha era um animal com mais dez quilos que o seu filho mas no entanto Killian dominara-o.

Os dias que se seguiram foram de grande tensão, não na família Lowland mas sim entre Killian e Misha. O Akita não se sentia confortável com a sua posição na família mas respeitava Killian e parecia ser o seu novo guarda costas. Os Akitas Inus são conhecidos por serem muito leais e Misha era sem dúvida leal para com Killian. À hora de alimentar os cães sentia-se uma grande tensão, Killian observava sempre mesmo que estivesse dentro de casa. Era impossível negar que exercia um grande controlo sobre os seus amigos de quatro patas. Havia uma altura do dia em que Killian e a sua família canina parecia dar-se lindamente, quando iam correr pelo bosque. Killian liderava os dois amigos, Freki era o mais velhote mas mesmo assim corria lado a lado com Killian. Misha seguia-os e os três corriam como se de uma caçada se tratasse. No fim das corridas os olhos dos três amigos brilhavam de satisfação. Apesar de ser humano, Killian corria tanto como os cães e nunca ficava para trás, em parte porque a sua posição não deixava que os outros o ultrapassassem. Rapidamente os três passaram de correr na relva em frente da casa para correr no meio das àrvores que limitavam o espaço relvado. Faye deixou de vigiar o filho sentada no degrau para passar a vigiá-lo sentada numa mesa de pic-nic perto das árvores.

Os bosques à volta da casa dos Lowland eram ricos em fauna e flora. Tinham sido considerados património natural pelo estado e não era permitido caçar. Devido à biodiversidade os bosques eram auto-suficientes, havia todo o tipo de animais predadores que controlavam o desenvolvimento das outras espécies. Era a lei natural, protegida pelo homem. No topo da cadeia alimentar daquela pequena Biosfera encontrava-se o lobo, animal muito tímido, raramente avistado. Eram poucos os homens que tinham visto algum, normalmente quando alguém dizia que tinha visto um lobo era automaticamente acusado de ter bebido demais.

Certo dia, depois de uma corrida, Killian juntou-se com os seus amigos perto da árvore no quintal. Entraram pelo portão lateral, também de madeira escura. Este portão estava sempre trancado por dentro mas Killian tinha um truque. Antes de sair para uma das suas corridas levantava sempre o trinco. Tinham os três as cabeças muitos juntas,de vez em quando Killian parecia dar safanões aos cães, estavam todos debruçados sobre algo ao pé da árvore. Faye encontrava-se na cozinha a lavar a loiça quando vira aquela cena pela janela que dava para o jardim. Estranhou não se ter apercebido da saida de Killian. Curiosa, dirigiu-se aos três amigos e quando viu o que se passava deixou cair um prato, começou a recuar e acabou por tropeçar caindo para trás. No meio dos três estavam restos de um animal e todos eles estavam a comer.”Keith…KEITH?” gritou Faye. Keith correu para o jardim em direcção à sua mulher “Que se passa amor, caíste? Estás bem?” Faye limitou-se a apontar para a atrocidade que acabara de ver “Olha para aquilo…olha o nosso filho!” disse Faye com voz trémula. “Oh meu Deus! Killian larga isso” Disse Keith pegando no braço do filho. Nesse momento Killian e os dois cães viraram-se para Keith como se o quisessem morder. Keith recuou, a sua cara estava pálida, parecia que tinha visto um fantasma. “O que é que vamos fazer agora?” perguntou Keith, “Que mal fiz eu a Deus Keith? Porque é que o nosso filho não é normal?”

segunda-feira, agosto 30

Fenrir - II

A casa dos Lowlands era grande e espaçosa, tinha um grande quintal com uma cerca alta em madeira escura. O chão era relvado, verde escuro, tinham ai uma árvore já morta mas optaram por conservar o tronco. A árvore dava um certo toque ao quintal, era também uma lembrança constante, nada é eterno. Killian tinha por hábito encostar-se a esta árvore, ficava encostado de cócoras a olhar para o chão. Fitava a relva e fazia todo o tipo de expressões, os pais observavam. "É o mundo dele Faye", dizia o pai pondo o braço por cima da sua esposa. "Mais sabes tu que não tem nada a ver com isso, quem te ouvir acha que não sabes nada sobre o teu filho", disse Faye debruçando-se sobre o alpendre e apoiando-se com os cotovelos. Quando Killian estava ao pé da árvore Freki ficava na sua casota, deitado observava em aparente ignorância. Havia um sentido de posse relativamente a esta árvore, era o lugar de Killian.

Quando não estava no quintal a exercer o seu domínio sobre Freki ou encostado à sua árvore, Killian ficava em casa. Os pais tinham decidido educá-lo em casa, claro que tinha as suas consultas regulares, era acompanhado por um grupo multi-disciplinar de médicos e terapeutas. Nunca faltou nada a Killian, e quando faltou Fenrir foi substituído por Freki, foi o único momento que fugiu à norma. Aos dez anos a vida de Killian mudou para sempre, certo dia ficara sozinho em casa com a sua mãe Faye. Freki estava no quintal a dormir, era um dia aparentemente normal. Killian gostava de correr no jardim à frente da sua casa, um terreno relvado até perder de vista. Era seu hobby correr, corria durante muito tempo. Não tinha uma hora especifica nem nada do género, corria como se precisasse de correr, com vontade de se mexer e voltava sempre no limite da exaustão. A sua mãe esperava-o sempre no degrau de acesso à porta de casa. Ficava a vigiar para o caso de ser preciso algo, ter um filho autista era uma preocupação constante, quase um emprego.

Nesse dia Killian fez algo que nunca tinha feito antes, a sua forma de correr estava mais agressiva, corria em fúria. Faye, habituada a vigiar o filho, sentiu que algo não estava bem e correu para Killian. Agarrou-o pelo pulso, " Ki, vamos para casa, por hoje já chega". Killian começou a sacudir-se para tentar fugir, foi ai que Faye o agarrou pela cintura para o carregar para casa. Killian esperneava e fazia uns sons animalescos, mas como sempre, não emitia uma palavra inteligível. Quando estavam a atravessar a estrada, ainda numa espécie de luta até casa, Killian deu um safanão a Faye. Podia ouvir-se Freki a ladrar no quintal do lado oposto da casa. Faye soltou Killian que correu de volta para a estrada mas escorregou na relva húmida e deu um tombo para a berma ficando de costas no chão. Um camião que passava travou de repente, o condutor tinha apitado umas quantas vezes mas Killian nem se apercebera. Faye correu imediatamente para o filho com o intuito de o agarrar. O camião carregava vigas em ferro, a súbita travagem e o safanão consequente haviam soltado uma dessas vigas.

Faye estava quase a chegar ao filho quando foi detida pela viga que rodopiava após embater no chão. O camião despistava-se a alguns metros destruindo alguns veículos pelo caminho. Killian assistia a tudo, ainda a tentar recuperar a respiração depois de cair de costas. Faye foi atingida mesmo em frente ao seu filho, a viga atingiu-a no peito e na cabeça numa pancada seca que pareceu ressoar no interior de Killian. Faye foi projectada contra o chão após o embate, rodopiou inanimada deixando uma rasto de sangue que lhe jorrava da cabeça. Killian olhava incrédulo, manchado pelo sangue da mãe que lhe escorria pela cara, até à boca, pelo pescoço, até ao chão. Freki ladrava incessantemente enquanto Killian cravava as mãos no chão com toda a sua força.

domingo, agosto 29

Fenrir - I

Killian nasceu com um transtorno global do desenvolvimento que os médicos mais tarde identificaram como autismo. Até aos três anos de idade tudo parecia estar bem com Killian mas depois dessa data, e até à idade pré-escolar, era incapaz de estabelecer uma ligação com outro ser humano. Não tinha qualquer contacto visual com as pessoas mas tinha uma fixação por animais, especialmente por Fenrir, um cão de cruzamento de Lobo de Alsácia com rafeiro de pelagem lobeira, animal de estimação da família. O relacionamento com Fenrir era comovente, Killian via-o como um irmão mais velho e como um modelo, pareciam comunicar entre si. Os pais de Killian, o senhor Keith e a senhora Faye, encontravam naquela relação algo de bom pois Fenrir era um elo de ligação entre eles e Killian, parecia que aos poucos esse elo era cada vez mais forte e a esperança de que Killian um dia pudesse comunicar directamente com os seus pais era algo muito próximo…até ao dia em que Fenrir morreu.


Killian contava já com seis anos quando perdeu o seu “irmão” mas devido à sua incapacidade nunca percebeu para onde Fenrir fora. Corria pela casa, procurava-o em todo o lado, os pais preocupavam-se, “ Killian, meu rico filho, O Fenrir foi-se embora, já não vai voltar” dizia Faye chorando por ver o seu filho naquela agitação. “Eu não sei Faye, temos que arranjar outro cão” disse Keith “Não gosto de o ver assim. Não me parece que outro cão possa ocupar o lugar de Fenrir.” Respondeu Faye. “Ele é ainda uma criança Faye, nem vai notar a diferença, fazemos assim, arranjamos um cão igualzinho. Certamente que mal não irá fazer e com o tempo ele vai esquecer o Fenrir”.

No dia seguinte os Lowlands tinham um novo membro na família, um malinois com pelo lobeiro igual ao de Fenrir, não lhe chamaram Fenrir porque sabiam que Killian não o ia reconhecer como o seu velho amigo por isso chamaram-lhe Freki. Nos primeiros dias Killian parecia ignorar Freki e das vezes que escolhia não o fazer parecia ser cruel para o pobre animal. Tirava-lhe a comida, saltava para cima dele e puxava-lhe as orelhas, Freki era um bode espiatório. “Ki não faças isso ao pobre Freki filho” dizia a mãe.”Killiam eu sei que tens saudades do Fenny mas isso não é razão para tratares mal o Freki.” Acrescentou Keith. Visto da perspectiva humana o comportamento de Killian era cruel e sem razão de ser, mas Killiam era especial, não fora educado por um humano, o comportamento dele era de um cão. Killian não estava a ser cruel e nem Freki se estava a sentir rejeitado, a leitura era simples: Killian era o Alpha da matilha e Freki era o Omega…isto fora um dos ensinamentos de Fenrir que ocupou o lugar de Beta, o babysiter de uma matilha.

Com o passar dos meses e anos a relação mudara, Freki seguia Killian para todo o lado e parecia fazer tudo o que este queria, no entanto a comunicação com as pessoas era cada vez pior. Killian não se comportava como um animal, era um ser humano completo, que andava erecto nas suas duas pernas, comia a mesa com os talheres mas simplesmente não falava, quanto ao contacto visual só o fazia quando tinha ataques de fúria, aí Killian não era humano, e os pais preocuparam-se.

Fragmentos - X - Purificação

"Incêndio?", disse com cara incrédula. "Não me recordo de nenhum incêndio, não tenho queimaduras, nada." "Senhor Daystar", interrompeu Meyer, "Entenda que ao fim de tantos dias não me resta mais nada senão a confrontação directa, nenhum dos outros tratamentos funcionou. O senhor não apresenta melhoras, tudo o que diz, esses episódios que refere, são memórias incompletas feitas de pequenos fragmentos. Fragmentos de razão que não conseguem fazer um momento completo. Tudo o que me contou, na minha opinião, não passa de uma mistura de realidade e sonho, uma resposta que o seu cérebro dá para compensar a perda de algo. Um trauma. Querer fugir da realidade pode ser uma escolha consciente, mas no seu caso parece-me algo involuntário". O mais absoluto silêncio dominava agora o quarto do hospital. As palavras de Meyer não faziam sentido, mas havia algo de verdadeiro. "Compreendo que o que lhe contei pode causar confusão mas tinha que o fazer, ainda assim não há qualquer resposta da sua parte. Como se chama? Qual a sua idade? Qual o nome do banco onde trabalha? O nome do seu chefe? A cidade onde vive? Tudo o que me contou está envolto num manto de nevoeiro, não há nada de concreto. Nunca me deu nomes, topónimos, nada. No que toca à sua mulher o senhor sabe, mas nos assuntos que lhe dizem respeito directo o senhor Daystar não tem qualquer referência concreta." 

"Senhor Daystar? Eu...o meu nome." a conversa de Meyer começava a fazer sentido, por muito que pensasse, o esforço era inútil. As memórias não estavam completas. "Entenda que a minha abordagem não é a mais correcta, mas pela saúde da sua mulher, o senhor tem que recuperar a memória. O seu filho, ele tinha três anos apenas, lembra-se de algo?", disse Meyer debruçando-se sobre a cama. "Não me lembro de nenhum filho, de nenhuma mulher, de nenhum incêndio. Não me lembro de nada! Não quero falar mais sobre isto, saia do meu quarto!" A porta do quarto abriu-se num estrondo, os vidros do quarto rebentaram em estilhaços. Sem qualquer hipótese para reagir Meyer viu-se projectado contra a mesa de cabeceira e perdeu os sentidos. Podia ver-se no corredor em frente à porta as enfermeiras a correr, uma grande confusão de pessoas em fuga. Doentes no chão, o elevador cheio de gente, gritos de socorro. "Mas que raio se está a passar?", disse enquanto se levantou da cama com a intenção de sair do quarto. Conseguiu chegar à porta mas ao dar um passo para dentro do corredor foi agarrado pelo pescoço. 

Agora suspenso no ar, não havia escapatória, estava cara a cara com a mulher de cabelos negros. Lentamente os cabelos começaram a mover-se e agora era possível ver uma cara. As pessoas no corredor continuavam a correr, poucas eram as que se apercebiam do que se estava a passar. "Olá amor", disse a mulher. "Anna...tu..." - "Silêncio, como ousas, tu que destruíste tudo!". No corredor ouviu-se um estrondo, como uma explosão, uma onda de fogo incinerava tudo e todos numa questão de segundos. Rapidamente o fogo passou a neve. A temperatura desceu drasticamente, a neve começou a escurecer enquanto se instalava nos corpos, nos restos, nos pedaços de pessoas, nas cinzas. A mulher estava agora a chorar, lágrimas escuras corriam-lhe pela face. "Como podes dizer que não te recordas? De mim, do nosso filho, ele tinha só três anos! E tu, tu! Destruíste tudo, atiraste-me para uma cama de hospital, mataste o nosso filho, destruíste a nossa casa! E dás-te ao luxo de não te recordar?" - "Impossível, eu não me lembro de nada...", pensava. 

A expressão de Anna, algo que não é deste mundo. Como podia um corpo tão frágil levantar um homem pelo pescoço. E o fogo? E a neve? "Vou levar tudo comigo, quero lá saber, e tu também. Se pensas que sais disto impune estás muito enganado. Fazes ideia do sofrimento? Do que eu tive que ver, a culpa é tua e há muito que passei o limite. Mas ouvir-te a dizer que não sabes, não te lembras, nem o nome do teu filho sabes!!!" - "Mas eu não me..." - "Cala-te! Eu ainda o tentei proteger, ainda nos defendi, de onde achas que vem essa ferida que tens nas costelas?" Com a mão firme Anna aproximou-o da sua cara, levantou outra mão e agarrou-o mais uma vez pelo pescoço. "Tu mataste-o! O nosso filho, destruíste a nossa casa, tu vais pagar, vão todos pagar!" Impotente, preso pelo pescoço, em esforço para se agarrar aos pulsos da mulher podia sentir a ferida das costelas a abrir-se. A temperatura do quarto começou a aumentar, uma erupção de chamas invadia o quarto furiosamente. Anna abriu a boca e começou a gritar enquanto as suas mãos esmagavam a traqueia da sua presa, a cada segundo que passava as chamas ficavam mais fortes, mais violentas, destruindo tudo no seu caminho num furação incandescente. A mãos apertavam mais e mais como se estivessem a esmagar uma lata de refrigerante. O calor era insuportável ao ponto da carne se separar do osso. Afogavam-se os dois em chamas, o grito de Anna podia ouvir-se fora do hospital. Todo o edifício ameaçava colapsar, pequenas explosões aqui e ali abalavam os prédios vizinhos que faziam chover vidros nas ruas.

Consumidos pelas chamas, consumidos por Anna. Consumidos pelo sentimento que ultrapassou o limite humano. Alguns minutos depois o prédio colapsava, as chamas consumiam os seus escombros num fogo que não tinha fim à vista. Várias equipas de bombeiros lutavam para o controlar e só ao fim de algumas horas a situação era dada como resolvida. O fogo, no entanto, não foi apagado por eles. A meio da noite , quando a lua já ia alta, começou a nevar. As chamas foram abafadas por um manto branco que mais tarde escureceu, conspurcado pelos destroços, pelas cinzas. Algumas pessoas afirmavam ouvir uma criança a cantar enquanto a neve caia, não houve sobreviventes, mas não morreu ninguém que estivesse no exterior do hospital. Causas desconhecidas, duas palavras que figuravam no relatório final do incidente. A neve caiu durante alguns dias e nunca mais voltou a nevar naquele local.


 Não podemos arrancar uma página do livro da nossa vida, mas podemos atirar o livro todo para o fogo. - George Sand

sábado, agosto 28

Fragmentos - IX - Peripécia

“Um psiquiatra”, pensou. “Desculpe-me Doutor. Como disse que era o seu nome?”, “Meyer, Dr.Meyer” respondeu o médico numa calma que parecia irritá-lo. “Doutor Meyer eu não sei o que se está a passar comigo, não me lembro de si nem tão pouco de ter falado consigo seja do que for.” Respondeu exaltado. “O Senhor sofre de uma espécie de amnésia pós-traumática, mas o que nos intriga é que esse trauma não é físico e pelos visto ainda o acompanha. Quais são as recordações que o atormentam?”. O coração começava a bater descompassado e o quarto a ficar mais escuro mas não como das outras vezes.  O sentimento era físico, dor, ansiedade, agonia. Olhou para o médico e contraiu o maxilar, a cara de Meyer estava serena, ao ponto de o deixar furioso, serena ao ponto de pensar que estava a ser gozado, o que é que se estava a passar? “Escute Doutor Meyer! Acha que sou maluquinho? Pois eu dou-lhe o maluquinho.” Respondeu com um sorriso quase demoníaco. “Lembro-me de neve negra e de uma mulher de cabelos negros que me persegue. Lembro-me também de uma criança pequena que me parece estar sempre a indicar o caminho para algo que pelos visto não leva a nada. Lembro-me de dor, de muita dor. Agora diga-me, o que se passa comigo?” 

O médico abanou a cabeça e olhou para os seus apontamentos sem dizer uma palavra. “O quê? Não me responde?” – “ Eu estou aqui para o ajudar. Todos os dias venho aqui ter consigo para falarmos, o senhor exalta-se, fala-me de uma mulher de cabelos negros, de uma criança pequena e de neve negra. Sempre o mesmo discurso, vezes sem conta, sem aparente melhoria.” Respondeu o médico de forma séria. “O senhor não sabe o seu próprio nome, não sabe porque está aqui e aparentemente só conhece uma pessoa, a senhora Daystar. Diga-me, de onde a conhece?”, perguntou o medico. “Eu…nós…a verdade é que desde pequeno que gosto de Anna…não, não é gostar…eu amo-a…é isso!” - “Continue “ encorajou Meyer. “Não sei porque lhe estou a dizer isto mas a verdade é que agora que ela está em coma tenho medo, muito medo de não lhe ter dito que a amo.” - “Diga-me, lembra-se do seu nome?”, disse Meyer em tom de desafio. “O meu nome? Claro, chamo-me Bugsy…não isso é…o meu nome? Não me recordo...” - “Talvez isto o ajude” disse o médico retirando um foto que estava no meio dos seus apontamentos. Na foto podia-se ver Anna com uma criança pequena ao colo, a mesma criança que o assombrava, ambas estavam sorridentes, ao lado dela estava um homem mas a foto estava rasgada e era impossível ver a cara.“ Onde foi a isto?” perguntou ao médico. “Esta foto pertence à Senhora Daystar. Estava na sua casa, aliás, na vossa casa.” - “ O quê?” - “Senhor Daystar, a sua esposa está entre a vida e a morte e o seu filho...morreu no incêndio. Encare a realidade, não se recorda mesmo de nada?”

domingo, agosto 8

Fragmentos - VIII - Realidade

"Escute, mesmo que conheça a Senhora Daystar, não pode estar aqui. Nem sequer são horas de visita, vamos, eu ajudo-o até ao seu quarto", disse a enfermeira enquanto dava um passo em frente no sentido da porta.
"Tem razão, eu preciso de descansar, mas diga-me por favor porque é que a Anna está internada". "A Senhora Daystar deu entrada no hospital inconsciente, foi encontrada em casa após os vizinhos terem visto fumo a sair da janela da cozinha". Começaram a andar pelo corredor em pequenos passos, as dores nas costelas eram constantes. "Mas então ela desmaiou com o fumo, foi isso?". Não sei os detalhes, mas um dos bombeiros que acompanhou a Senhora Daystar na ambulância disse algo sobre serem duas vítimas. Bem, cá estamos, o seu quarto, faça o favor de se deitar. Se precisar de alguma coisa carregue ali no interruptor do costume."

O quarto parecia estar a ser usado há alguns dias, a cama estava desfeita, algumas revistas em cima da cadeira do lado esquerdo. Na mesa de cabeceira estava uma garrafa de água meio cheia, um copo com algumas gotas e um guardanapo amachucado.
"Mas há quantos dias é que estou aqui?", deixou escapar enquanto caminhava para a cama. "O senhor está aqui há seis dias, não se recorda?", disse a enfermeira enquanto corria os cortinados. "Seis dias!? Mas por que razão estou eu aqui?". "O senhor tenha calma, se não se recorda não há motivo nenhum para eu não lhe contar" retorquiu a enfermeira enquanto folheava a ficha de internamento. "Que o senhor deu entrada há seis dias já nós sabemos, o motivo de internamento e a óbvia razão para se movimentar tão devagar são as três perfurações que tem na zona das costelas, felizmente nenhuma com profundidade suficiente para causar danos permanentes. Estava também desidratado quando aqui chegou, não vejo mais nenhuma informação relevante. Deite-se, e se precisar de alguma coisa, já sabe." disse a enfermeira enquanto saia do quarto e fechava a porta.

"Seis dias, seis dias, seis dias, seis dias...", como podia estar ali há seis dias? E o trabalho? O seu trabalho no banco? Não é que não tivesse algum dinheiro em poupanças mas seis dias de faltas injustificadas poderiam levar a despedimento. "O meu patrão deve estar furioso..." Mais uma vez via-se assolado por uma multidão de pensamentos, quem o tinha esfaqueado? onde tinha sido encontrado? o que tinha acontecido a Anna? porque não se recordava dos últimos seis dias?

Passou o dia enclausurado no quarto, meio a ver televisão, meio a ponderar a situação em que se encontrava. Nem um floco de neve à vista, nenhuma sombra estranha, nenhuma criança, apenas uma dor bem real nas suas costelas. O serão foi interrompido por alguém a bater à porta, bateu três vezes e entrou. "Boa noite, como estamos hoje?" disse uma figura que entrou no quarto. Um médico acabara de entrar, alto e muito magro, com a barba por fazer e cabelo grisalho. Os olhos pequenos e esbatidos fitavam o seu paciente que o olhava também em expressão de desconhecimento total. "Boa noite...". "Então, não me diga que não se lembra de mim" ,disse com um pequeno sorriso. "Enfim, também depois do choque que sofreu, suponho que seja normal estar um pouco desnorteado. Sou o Doutor Meyer, médico psiquiatra, gostava de continuar a conversa que tivemos ontem à noite.", disse puxando a cadeira do lado direito da cama.

sexta-feira, agosto 6

Fragmentos - VII - Daystar

Volta a olhar para o tecto e deixa-se adormecer, as dores são a sua única companhia. Passados alguns minutos, em sono profundo, começa a sonhar. Há algo que não é normal, sabe que está a sonhar, está acordado dentro do seu sonho. Continua no hospital, mas está tudo vazio, no quarto apenas existe a cama onde está deitado. Destapa o lençol, tira a agulha do soro e  levanta-se ainda com algumas dores. Sai pela porta que dá acesso ao corredor.
O hospital tem um aspecto assustador, as lâmpadas estão a cair do tecto e apesar de muitas ainda permanecerem acesas há também as que estão a piscar. Só há uma certeza, é mesmo um sonho. Apesar do cenário horripilante como fundo, sente-se seguro neste hospital. Decide investigar o local, o corredor parece não ter fim, há algo que se move por entre todo aquele branco…um floco de neve negra oscila pelo ar. Um floco toca no chão, mais um, agora outro. Está a nevar dentro do edifício. O sonho que outrora lhe parecia seguro começa a deixá-lo preocupado. Ao fundo do corredor vê uma criança a correr e por instinto começa a persegui-la. Não a consegue alcançar, o rasto de pegadas na neve perseguem a criança até que esta chega a uma porta. A porta começa a abrir-se, gradualmente há uma luz branca que invade o corredor, a criança fica estática e aponta para o interior do quarto. "Para onde estás a apontar?", grita em plenos pulmões, "queres que entre?". "Da outra vez fizeste-me entrar na gruta, passei um inferno por tua causa". Subitamente, sem qualquer movimento voluntário está em frente da porta com a criança a seu lado. Ouve-se um estrondo, "um relâmpago?", um clarão invade o quarto. A luz torna-se mais intensa a cada segundo, intensa de mais para ser suportada.

“Acorde, porque está aqui? Este não é o seu quarto.” Diz uma enfermeira que o segura nos braços. “Eu…eu…não sei, o que se passou?” responde. “Não sei, o senhor veio para este quarto, não se lembra?”. Ainda meio atordoado lembra-se de ter andado, mas foi no sonho, será que é sonâmbulo? “Acho que sou sonâmbulo” diz ele com ar de espanto esboçando um sorriso sarcástico. “Pois, não sei nem me interessa. Tem que voltar para o seu quarto.” Diz a enfermeira enquanto o ajuda a levantar. Começam a andar no sentido da porta do quarto, "mas que quarto...", ainda não tinha acabado de dizer as palavras e já estava a perceber. Virou-se repentinamente para o paciente que estava na cama, era Anna, era mesmo ela! Assolado por um turbilhão de pensamentos aponta para Anna com a mão trémula, ”Diga-me, aquela rapariga que está na cama…o nome dela é...é Anna Daystar não é?!”. “Sim? A senhora Daystar foi internada na noite anterior ao dia em que o trouxeram a si.”. “Na noite anterior?” ripostou ele.”Sim, eu sou velha mas não sou caquéctica, sei bem o que digo.” Como é que isso seria possível? Na noite anterior ao dia em que ele fora levado para o hospital? Então quem era aquela “Anna” que o atacara no metro?

terça-feira, agosto 3

Fragmentos - VI - A Erínia

"Hello Bugsy?" disse Anna fazendo uma cara pateta. "Sim, sei que gostas de olhar para mim mas já  me começas a assustar!"
"Não me estou a sentir nada bem Anna, tenho dormido mal, tenho tido uns sonhos que não me deixam dormir. Ainda agora acho que vi qualquer coisa ao fundo do túnel do metro", disse deixando escapar o fôlego. Aparentemente não havia nenhuma razão para estar agitado, a próxima paragem já não estava longe.  Alguns passageiros olhavam pelo canto do olho com cara de desconfiança."Não estou a perceber Bugsy, oh desculpa estar a atormentar-te. Acho que precisas de falar com um médico, falar com alguém que perceba o que dizes. Já pensaste ao menos em tirar uns dias de férias?"
Encostou-se ao banco ainda em sobressalto, "tens razão, vou pedir uns dias". Pendeu um pouco para o lado de Anna e disse em tom de suspiro, "Não te preocupes."

"Próxima estação..."

O metro abrandou, todos os passageiros se levantaram. Lentamente, ao acaso, foram chegando perto das portas. Levantaram-se os dois também, trabalhavam na mesma zona, ele no banco da rua 13 e ela na Centaur South. Uma livraria antiga mas bem conservada na rua 15, frequentada por clientes de elite dispostos a gastar grandes somas em livros raros. "Vá, recompõe-te, não vais entrar no banco com essa cara!", disse dando -lhe um pequeno encontrão que coincidiu com o parar do da carruagem. "Tens razão Anna", respondeu olhando para ela e fixando os olhos. "Tens a maquilhagem toda borrada, tu é que não podes ir trabalhar com essa cara".
Ana abriu a mala, "tens razão". As portas do metro começaram a abrir lentamente, os passageiros preparavam-se para sair. Num movimento brusco Anna tirou da mala o que à primeira vista parecia uma faca de cozinha. "Anna mas que..." Em três safanões violentos desferiu três facadas nas costelas do seu amigo de infância que arregalava os olhos em puro terror. Um corpo caia inanimado dentro do metro, os passageiros saiam um a um após o abrir das portas.Total indiferença, apáticos, fantasmagóricos.

Anna saiu do metro, a faca ensanguentada na sua mão direita. Dos seus olhos precipitavam-se lágrimas escuras que lhe corriam pela face. As portas do metro fechavam-se, Anna abanava a mão esquerda fazendo adeus ao corpo. Um sorriso inocente na sua cara de criança, deu meia volta e passo ante passo caminhou para as escadas do metro. As portas da carruagem já estavam fechadas e o metro em movimento. A bordo apenas um corpo que pouco a pouco via a sua vida a escoar pelo chão da carruagem. Pequenas gotas vermelhas marcavam o percuso de Anna.

"Próxima estação..."

"Quero abrir os olhos mas a luz é tão intensa", pensava enquanto tentava perceber onde estava. Finalmente, ao fim de uns segundos de esforço, conseguia ver e discernir. "Não conheço este tecto, branco, sem textura." Mas que sensação horrível, que gosto na boca, que dor no corpo. "Mas onde é que eu estou?", pensou olhando em todas as direcções.
Estava deitado no que aparentava ser uma cama de hospital, o mínimo movimento provocava dores agudas nas costelas do lado esquerdo. Tinha o torso envolto em ligaduras manchadas de sangue, os lençóis da cama eram brancos, soro no braço esquerdo, um bip ocasional quebrava o silêncio.

Era de noite, a porta do quarto estava fechada. Os cortinados brancos da janela ondulavam ao sabor do vento que entrava no quarto. Uma cadeira de cada lado da cama. Na mesa de cabeceira um copo virado ao contrário em cima de um guardanapo que por sua vez estava em cima de um pires. Uma pequena jarra acolhia um ramo de flores estranhas, dentes de leão. Encostado à jarra, um cartão : "As melhoras, Anna."

Fragmentos - V - Luz ao fundo do túnel

Anna não era uma pessoa nova na sua vida, conheciam-se desde pequenos. Ela tinha uma forma muito própria de irritá-lo. Desde muito novos que lhe dera um outro nome, Bugsy, como o cartoon. Não é que ele a odiasse por isso, era apenas uma coisa que o tirava do sério.
“Anda lá Bugsy, até parece que é o fim do mundo.” disse Anna, alheia ao inferno que o seu amigo andava a passar.
“Sim, não é nada que se pareça com isso.” murmurou ele. Entraram para a carruagem e as luzes falharam por um breve instante, as portas fecharam. Por muito banal que fosse a situação achou muito estranho. A carruagem, tal como a estação, era nova e parecia em perfeitas condições.

Anna olhava para ele, como se o estivesse a inspecionar. De vez em quando sorria e desviava o olhar. “O que foi?” perguntou ele. “Nada Bugsy, estava apenas a lembrar-me de quando éramos crianças” respondeu ela. “Anna podias parar de me chamar Bugsy, só por hoje? Até parece que não tenho outro nome.”disse ele com como se estivesse realmente chateado. “Oh, mas é um nome tão fofinho. Bugsy, Bugsy, Bugsy.”retorquiu com um sorriso. Bugsy deu uma pequena gargalhada mas subitamente a sua atenção virou-se para o floco de neve que entrara pelo respirador da carruagem. Parecia mais cinza que um floco de neve, mas quando finalmente caiu lhe tocou com o dedo, sentiu que era frio. Era sem duvida um floco de neve, um floco de neve negra, como os que vira no seu sonho. Quando olhou para Anna esta continuava a sorrir, mas algo de estranho parecia estar a acontecer. Não havia movimento, ninguém se mexia. O tempo tinha parado, estava tudo silencioso.

No exterior da carruagem começara a nevar. Em seguida ouviu-se um barulho lá fora, parecia uma manada, ou mesmo uma avalanche. O som preocupou-o, a questão do tempo tinha-se tornado secundária. Abriu a janela da carruagem, colocou a cabeça de fora para ver o que vinha na sua direcção e foi invadido por uma sensação de frio, como se tivesse pequenas agulhas de gelo espetadas nos ossos. O que estava diante dos seus olhos era impossível, não conseguia acreditar. O frio deu lugar a um tremor, não era medo, era um frenesim de adrenalina. Os músculos contraiam-se, a visão ficava mais límpida, a respiração acelerava. O seu corpo era agora uma máquina em aquecimento. Rapidamente fechou a janela. Um clarão de luz fosca e espessa encheu a sua retina e do nada estava frente a frente com Anna a olhar muito séria para ele. “Estás bem Bugsy? Pareces pálido.” disse Anna. “Hã? Desculpa. Eu...acho que tive uma branca.” respondeu ainda aterrorizado.

segunda-feira, agosto 2

Fragmentos - IV - Compasso

Dedos cravados no peito, respiração ofegante e o abdómen contraído, é o começo de um novo dia. Não é surpresa nenhuma acordar assim, mas é contra a natureza das coisas acordar num frenesim deste género. São precisos alguns momentos para se recompor. Há pouca luz no quarto, parece ser muito cedo. "Que horas são?" - deixa escapar enquanto se senta à ponta da cama. O chão do quarto está frio mas sabe bem nos pés. A ponta da cama está a cerca de um metro da parede, ao inclinar-se um pouco mais fica com a testa encostada  a olhar para o chão. Os sonhos recorrentes, as imagens, as experiências que vive quando fecha os olhos. "Um dia isto tem que acabar". A janela está aberta, lá fora ouve-se a noite, as árvores sussurram quando o vento lhes toca nas folhas.

São 6.30, hora de se levantar, fazer a barba e tomar banho. Agora em pé, em frente ao espelho como todas as manhãs, acha-se mais magro. Passa a mão na cara e esfrega os olhos, depois dos sonhos há sempre um momento de letargia, é o abrandar da mente, tudo fica mais lento. Vira as costas ao espelho, abre a porta e sai do quarto para entrar em seguida na casa de banho que fica mesmo em frente. Mais uma vez um espelho, barba por fazer, lavar os dentes, rotina diária. Tomar banho, vestir um fato, ajustar o nó da gravata e calçar aqueles sapatos que tanto odeia. Um momento em sentido em frente ao espelho e um sorriso hipócrita é tudo o que precisa para sair. Abandona o  quarto e passa pela sala, pega num pacote de bolachas e sai. A porta bate, a corrente do trinco arranha a madeira durante o embate, não está ninguém em casa.

São três andares de escadas até ao rés-do-chão, o elevador é algo que gosta de evitar. Certa noite ficou preso no elevador com uma senhora que não se calava, não tem muita paciência para a miséria alheia. A senhora do elevador já não vive lá, dizem que morreu durante a noite sentada em frente da televisão, foi encontrada alguns dias depois. Não vive ninguém nesse apartamento, o preço é baixo mas ninguém quer alugar. A fechadura da porta da rua está montada ao contrário, há que rodar a chave em sentido inverso para sair, em cinco anos ninguém se sentiu incomodado por este facto. Até é bom viver aqui, o prédio é moderno, não há confusão, as noites são silenciosas e "ninguém me incomoda". 

Agora é só descer a rua e comer as bolachas que podiam estar menos moles. São dez minutos a andar até ao metro, é uma estação nova e ainda não há sinais de vandalismo. Quando se entra sente-se um calor invulgar, é uma atmosfera artificial muito caracteristica. O metro tem um sistema de som que passa música constantemente, hoje podemos ouvir uma criança a cantar, notas de piano espaçadas caem no silêncio. "Devem ter-se enganado". 

Passar o cartão, descer as escadas e esperar que o metro chegue. É estranho não estar ninguém ali a esta hora, costuma ter algumas pessoas ainda que poucas. É melhor esperar sentado. "Preciso mesmo de comprar uns sapatos novos." Vem ai alguém que se aproxima a passos lentos, passos familiares, certos como o ponteiro dos segundos, há um compasso entre cada impacto que ecoa pelo túnel. Saltos altos, bem vestida, caminha segura de si. A senhora senta-se a seu lado, pousa a mala no colo.

"Deveria estar preocupada?" disse enquanto lhe dava um pequeno encontrão com o ombro. "Nem levantas a cabeça, e sabes que sou eu!"
"Bom dia Anna" com alguma vergonha à mistura. 
"Olha para ti, um homem feito, encontras-me aqui todos os dias e dizes sempre a mesma coisa" retorquiu cruzando os braços e ocultando um pequeno sorriso. 
"Sabes que não sou de grandes festas, esta rotina dá cabo de mim" disse enquanto fingia ver as horas no telemóvel do emprego. "Ando a dormir mal sabes?"
"Grande novidade que me contas, estás com péssimo aspecto", Anna levanta-se, "Vá, o metro está a chegar".
"Oh sim claro, mal posso esperar para chegar ao emprego" disse levantando-se e apanhando pelo canto do olho algo que o fez abrandar o movimento. "Um floco de neve no metro?" disse acompanhando o movimento do mesmo.
O floco serpenteou pelo ar até cair em cima da carruagem. Anna agarra-o pela mão, "Vá, não podemos perder o metro!"

Fragmentos - III - Sonhos

Acorda de novo, o silêncio e a escuridão a que já está habituado preenchem o quarto. Desta vez é diferente, o coração não bate mais rápido, não existem suores frios, tudo está calmo. Está tudo estranhamente calmo.
Depois dos rituais matinais de higiene e preparação psicológica para o árduo dia, o homem traça o seu caminho para o trabalho. É o mesmo de todos os dias, mas hoje, ao entrar no túnel que o leva para o metro, é assombrado com imagens do sonho que teve. O túnel do metro transforma-se na caverna, e num abrir e fechar de olhos volta a ser o túnel. Passo a passo, caminha pelo elaborado labirinto que o leva até ao metro, passo a passo é invadido pelo sentimento de estar novamente na caverna.

Quando chega ao local de embarque olha em seu redor e não vê ninguém, apenas ratazanas que se banqueteiam com comida deixada por outros utentes. Eis que surge um vulto negro, as feições que sobressaem são as da mulher do sonho. Fecha os olhos, abana a cabeça e ao olhar para o sítio onde vira o vulto apenas encontra vazio. O metro chega a chiar, como se de um dragão voraz se tratasse. após o susto inicial o homem sorri e pensa para si mesmo, "estou mesmo a dar em maluco." Chega ao local de desembarque, toda a viagem foi calma e sem mais sobressaltos. Quando sai do túnel do metro vê uma multidão em círculo a olhar para o chão, a curiosidade é despertada e apressa-se ver o que se está a acontecer. Pelos comentários que ouve, uma criança foi atropelada, a mãe segura-a nos braços enquanto grita por ajuda. A correr por entre a multidão chega finalmente ao trágico cenário. O sangue pára nas suas veias e um frio mórbido instala-se no corpo, a criança moribunda que se contorce e bolsa sangue é a mesma do seu sonho. A mãe aponta o dedo para o homem enquanto lhe correm as lágrimas.

Tudo em volta rodopia, tudo em volta fica negro e silencioso. Fechar os olhos não é solução para acordar deste suposto sonho. Os olhos abrem-se e ao longe está a mesma mulher, a mesma de cabelos negros que se ri na sua direcção. O grito reaparece, e o homem entra em convulsões de agonia, cai no chão e todos parecem indiferentes ao que lhe está a acontecer. A mulher aproxima-se em passos lentos, umas vezes é visível, outras vezes apenas uma sombra. O homem começa a gritar, o seu grito e o grito da mulher são um só, não há espaço para mais nada, resta apenas ceder. As dores são insuportáveis, o sabor a sangue surge-lhe na boca e os olhos reviram-se, sem mais forças no corpo desmaia e a escuridão instala-se.

domingo, agosto 1

Fragmentos - II - Neve

Passo a passo entrou na caverna, a criança permaneceu no exterior. Já na escuridão olhou para trás, conseguia ver apenas a luz que a criança emanava, tudo o resto era completa escuridão. Abriu os braços e com as mãos tocou nas paredes de cada lado, achou mais seguro, que não se iria perder. Tocar nas paredes, sentir a textura e os sulcos, e andar. Andar sempre em frente, seguir a indicação da criança. Quem era a criança?

Agora com passos mais pequenos, com receio de embater contra alguma coisa, contra alguém. Não era possivel estar ali alguém, ao fim de tanto tempo, ou seria pouco tempo? Não havia qualquer noção temporal, nenhum som, apenas o escuro e as paredes rugosas.

Eis que em desespero surge uma luz, passo a passo uma luz cada vez maior. Está a nevar lá fora, os flocos deambulam lentamente até tocarem no chão. A saida da gruta culmina numa clareira fortemente iluminada pelo luar, intenso e quase hostil. Saiu da gruta e por instinto abrandou o passo, cerrou os olhos para ver melhor no meio de tanta luz. Passaram uns segundos até que conseguisse compreender o espaço onde se encontrava. Os flocos de neve eram negros, oscilavam no ar até cairem no chão, acumulavam-se num manto escuro que se mexia muito lentamente.

No centro da clareira está uma mulher de vestes negras. Inerte, não há um rosto que se consiga discernir. Os galhos das árvores cortam o luar num emaranhado que se estende sem limites, neste local só existe a clareira e a mulher. A neve continua a cair, é preciso avançar e falar com esta mulher, será a mãe da criança?

Conforme avança a luz é menos intensa, esta mulher está nua, os seus longos cabelos pretos que tocam no chão causam a ilusão de estar vestida. Está a chorar, há um movimento recorrente de sufoco, de vómito, de agonia. Tem uma das mãos na garganta e a outra a tapar a boca numa convulsão frenética, as unhas arranham a cara e o pescoço. As feições contorcem-se, mudam, espasmam. Há um olho que se abre, agora o outro, os movimentos param. Há um momento de serenidade, as feições de agonia dão lugar a um rosto sereno e sorridente.

A mulher está agora a uns meros centimetros do guerreiro que não tem qualquer reacção, nenhuma palavra é proferida, não há um movimento. A neve continua a cair, o luar passa por entre os galhos e num espasmo tudo se altera. A neve negra movimenta-se em remoinho e no centro está a mulher, o guerreiro dá dois passos a trás mas é agarrado por duas mãos trémulas, está agora cara a cara com esta mulher que já não se ri. A neve sobe-lhe pelas pernas sob forma de liquido negro e dissipa-se em cada poro. As feições mudam, os olhos abrem-se ao ponto de não conseguirem mais. Estão os dois cara a cara, a mulher abre a boca ao ponto de se ouvir um estalo no maxilar. A neve que permanece pulveriza-se numa explosão de particulas negras e a mulher começa a gritar. Estão cara a cara, não há escapatória, o som é ensurdecedor, a agonia é absoluta. Tudo em redor se revolve, há cada vez menos luz e o grito não tem fim.

Fragmentos - I - Frenesim

Acorda em sobressalto, o coração quer saltar-lhe do peito, o sonho era tão real que ainda sente o frio do ar gélido, o sangue quente salpicado após ter decapitado um homem com um só golpe. Ainda o rugir dos homens e o embate das espadas ecoam na sua cabeça. Estes são os sonhos que o assombram todas as noites. Talvez seja o cérebro a compensar a vida monótona que tem como bancário, talvez seja um vislumbre da sua vida passada. Hoje em dia é um homem de fraca estatura, franzino e bastante submisso. O homem que encarna todas as noites é forte e destemido, uma fera sedenta de sangue – Será que sou uma pessoa normal? – Questiona-se. Talvez as pessoas normais sonhem em ter a vida que tem agora, ou será que nem sonham?

Na noite seguinte as mesmas imagens e sensações invadem-lhe os sonhos, desta vez não quer acordar, quer saber mais, quem é ele e o que faz no meio desta carnificina? O rodopiar de um machado na sua direcção, a esquiva, o desferir do golpe que desmembra um homem alto e peludo que lhe quer tirar a vida. O homem cai inanimado e o guerreiro pisa-lhe a cara com o calcanhar…uma morte horrível. Subitamente ouve um grito que se aproxima por trás, quando se vira para o enfrentar vê uma espada que o trespassa…acorda de novo num grito, as mãos cravadas no peito…era só um sonho.

Na noite seguinte tem medo de adormecer, mas está cansado da vida que um cubículo lhe oferece, adormece. Desta vez está sozinho numa floresta, ao longe, por entre corpos esventrados vê uma criança tão branca que lhe parece translúcida. Corre em direcção à criança que foge em forma de brincadeira, mas na verdade encaminha-o para uma gruta escura. Não há indícios de ser um local perigoso. A criança fica à entrada e aponta para o interior da gruta. De todas as noites que encarna este homem é a primeira vez que não há mortes nem sangue, apenas uma criança que parece indicar-lhe um caminho, uma entrada…