segunda-feira, maio 16

O Dom da Palavra

“Um homem consegue mudar o mundo com uma bala no sítio certo.” É tão verdade como “um homem consegue mudar o mundo com a palavra certa”, no entanto a força da palavra é facilmente parada com 7,62 x 51 mm de chumbo.


Um projéctil 7,62 voa a 850 metros por segundo, isto se tiver a carga exacta e o projéctil não for defeituoso, claro que não falo nas munições russas, aliás eu só confio nas munições feitas for mim. Para executar um tiro não basta premir o gatilho, existe um extenso ritual que se faz e que requer algum tipo de preparação. Por exemplo, eu consigo suster a respiração por dez minutos, isto quer dizer que com treino consegui baixar o meu ritmo cardíaco a níveis bradicardíacos. Para que serve isso? São precisos segundos para premir um gatilho mas até chegar essa altura podem passar minutos. Através de uma mira telescópica é mais difícil identificar o alvo, porque a janela é mais pequena e por causa da ampliação, o timing é a chave de tudo. Até soltar o chumbo o atirador é um maestro de uma orquestra em que nenhum instrumento deve falhar.

Nasci com uma infecção pulmonar e com poucas defesas no organismo, isto pode parecer uma coisa negativa mas vejamos o seguinte. Devido à infecção pulmonar tive que fazer fisioterapia, isto consistia em vários exercícios que obrigaram a minha caixa toráxica a abrir e a que os meus pulmões ficassem com mais volume. A falta de defesas deixavam-me várias vezes doente, isso fez com que o meu corpo se habituasse à doença, como é que isso pode ser bom? Bem, quando estou doente o meu corpo responde da mesma forma e posso contar com ele da mesma forma. Nasci também com tinnitus, um zumbido nos ouvidos. Após várias análises não encontraram nada no meu ouvido médio e interno, ou seja, não sabem a razão. A verdade é que o tinnitus me ajuda na audição pois o zumbido é uma fronteira que detecta qualquer registo, seja mais grave ou agudo. Qualquer som que não seja o zumbido é claro que nem água. A minha visão também não é das melhores, sou daltónico, ou melhor, tenho dicromacia deuteranopia, uma deficiência que me impede de ver a cor verde. A minha forma de daltonismo, para além de me impedir de ver as cores como elas são, tem uma vantagem. Eu consigo ver melhor as formas e as modelações dos tons, o que é óptimo para um atirador. Resumindo, todas as minhas deficiências são as minhas melhores qualidades pois fazem de mim um ser prefeito dentro do que é imperfeito para o comum mortal.

Já estou aqui há dias, demorei uma semana a escolher este sitio, a medir temperaturas e pressões atmosféricas, verifiquei registos topográficos e analisei todo o terreno. Este é sem dúvida um bom lugar, um pouco longe, mas um bom lugar. Já detectei o alvo, mas como disse existem factores que me impedem de disparar logo. Tenho que ocultar o som da minha M24A2, tenho que avaliar a temperatura para corrigir a mira, tenho que verificar o vento ao longo do trajecto. O cano da minha M24A2 força o projéctil a uma rotação dextrosum, ou seja, no sentido dos ponteiros do relógio. Isto quer dizer que ventos da direita para a esquerda fazem com que o tiro suba e vá para a favor do vento. Ventos da esquerda para a direita fazem o projéctil descer a favor do vento. Em suma, o momento exacto requer um conjunto de factores que nem sempre alinham.
Depois de identificar o meu alvo é preciso corrigir a mira e manter 80% de oxigénio nos meus pulmões. Chega a altura certa. O sino da torre da catedral toca três vezes, a primeira badalada marca o inicio, a segunda ajuda-me a perceber o ritmo e a prever a terceira e eis que esta chega. Forço o percutor a picar a escorva da munição que faz explodir a carga e libertar o projéctil. Este voa e demora 1,09 segundos a atingir o alvo. Este é atingido no bolbo raquidiano, um tiro que entra um pouco abaixo da linha dos olhos e sai pela nuca.

A confusão e o caos só vem depois de uns segundos, o público que estava a ouvir o patriarca religioso não se apercebe do sucedido, na verdade nem mesmo os que estavam no pódio.

Morre assim um símbolo que usava palavras para mudar o mundo. Eu usei uma bala. A minha existência podia ser a prova de que algo me fez assim, perfeito para o serviço que acabo de executar, mas se isso fosse mais do que uma coincidência então acabei de cometer o maior erro da humanidade. O que penso eu sobre isto? Nada, não sou pago para pensar.

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