quarta-feira, novembro 27

A Primeira Verdade - Parte I

Não foi dor o que senti, foi como se o meu peito quisesse implodir, não era dor mas já sabia o que me estava a acontecer.
O meu nome era Artur Teodoro Marques, outrora um grande médico, mas naquele dia era eu o paciente. Estava a morrer de um enfarte agudo no miocárdio, mais conhecido por ataque cardíaco. Não custou muito, não senti dor, apenas aquela pressão sufocante que levou o meu último suspiro.
Ao fechar os olhos para morrer tive, naquele dia, o que me pareceu ser uma alucinação, estava a nascer de novo.
Desculpe-me se isto está a parecer muito confuso e algo surrealista mas por muito ridículo que possa parecer não estou a falar por metáforas. Realmente morri naquele dia e o que me pareceu uma alucinação era mesmo real, eu nasci de novo, foi como se tivesse uma segunda oportunidade, eu que sempre fui ateu e nunca um cidadão exemplar. Este fenómeno marcou o fim e também o inicio de mais um ciclo de reencarnação. O estranho é que eu já não estava em 2001, nem anos ou séculos depois mas sim no século VIII na Bretania. Não me lembro do dia em que nasci, apenas tenho uns flashbacks, na verdade até aos meus dezasseis anos nesse ciclo tudo me pareceu um sonho, uma mistura de hoje e ontem. É difícil de explicar. Já estou a enrolar tudo de novo. Comecemos do início.

Hoje o meu nome não é importante, já tive muitos, é apenas um rótulo. Eu sou um Renascido, já voltarei ao conceito, por agora deixe-me explicar o resto.
A vida que nós conhecemos não tem um princípio, meio e fim. Todos nós reencarnamos, no entanto o conceito de reencarnação não é o apropriado. Na verdade o que realmente acontece é que a nossa essência, alma, espírito, chamem-lhe o que quiserem, viaja de época para época, de trás para a frente, de forma aparentemente aleatória. Chama-se a cada vida passada um ciclo. O Renascido é aquele que consegue transportar de um ciclo para o outro toda a informação e experiências que viveu no ciclo anterior. A informação que transportamos para o ciclo seguinte só nos é revelada, na totalidade, quando somos emocionalmente e intelectualmente maduros, entre os dezasseis e os dezoito anos, umas vezes mais cedo outra mais tarde.
Ao Renascido é-lhe imposta uma regra, não pode revelar nenhuma das Três Verdades, são elas: O nosso propósito, quem somos, o que vai acontecer. Nenhuma destas verdades pode ser revelada aos Adormecidos, aqueles que não são Renascidos ainda. A segunda e terceira verdades são óbvias entre Renascidos, no entanto não falamos delas, mesmo entre nós. A verdade que procuramos é a primeira, saber o nosso propósito. Quantas vezes já ouvimos dizer, que a grande pergunta é saber o que estamos cá a fazer?
Há no entanto forma de contornar as regras, há como revelar as verdades, mas há que saber como o fazer. Podem ser dadas pistas através de várias formas, as mais comuns são as formas de arte. A segunda verdade normalmente não é de grande interesse para os Adormecidos, pois por muito fértil que seja a imaginação humana, esta nunca é levada muito a sério. É normalmente confundida com mitos, superstições ou crenças. A terceira verdade é fácil de revelar, através dos famosos adivinhos e cartomantes. A primeira verdade é aquela que todos procuramos, poucos a encontram, é sem dúvida a mais difícil de contornar mas no entanto nada é impossível. Revelar uma verdade de forma directa tem a derradeira consequência, o apagar da nossa essência, para sempre.

Agora que já lhe dei os alicerces vou retomar a minha estória.
O ciclo que revivi foi como uma lenda ou conto de fadas, se até agora não acredita em tudo aquilo que lhe estou a dizer, vai achar que estou doente e que sofro de esquizofrenia ao ouvir o que se segue.
O meu nome era Arthur, vivia com o meu tio já idoso que temia morrer e deixar-me só. Para poder garantir a minha educação e subsistência resolveu arranjar-me um tutor.
Tinha os meus catorze anos e não estava completamente renascido, recordo-me que o pobre do meu tio não realizou o seu desejo, morreu antes de me arranjar um tutor. Lembro-me que apesar de tudo tive sorte pois passados uns dias encontrei um velho que apesar da idade parecia muito saudável, era sem duvida a pessoa mais velha que tinha visto e no entanto era como se tivesse vinte anos. Nesse Ciclo recordo-me que era muito religioso devido a experiências passadas. Comecei a acreditar que Deus me tinha dado uma segunda hipótese e que naquele dia me havia ajudado a encontrar aquele velho. Durante dois anos fui filho, aluno, e ajudante desta pessoa que nunca me revelara nada da sua vida nem tão pouco o seu nome. Tratava-o apenas por Senhor. Foi nesse ano que renasci por completo, não é algo que aconteça de um dia para o outro. Vamos ganhando consciência, não nos assusta saber que já vivemos outra vida. O que outrora seria extraordinário era agora banal, o importante era continuar.
Devo muito a este homem sábio, ensinou-me coisas que não eram daquela época, coisas que me levaram a pensar se não era ele um viajante como eu. Este meu tutor, se assim quiserem chamar-lhe, enchia-me a cabeça com perguntas difíceis, adivinhas sem nexo e tarefas absurdas. Afirmava que eu era especial, mas que não era o único. 

Após algum tempo resolvi revelar o meu segredo, sem sucesso pois fui silenciado pelo meu tutor. Como se tivesse consciência do que lhe queria transmitir colocou o seu dedo sobre os meus lábios, fechou os olhos e acenando com a cabeça disse “eu disse que não eras único”. Nesse dia fiquei a saber, juntando as suas palavras aos jogos mentais e a todas as perguntas de que era alvo. Sabia agora o que era ser Renascido, sabia que também ele o era, sabia das Três Verdades. Tinha agora conhecimento das duas últimas verdades e ansiava por saber a que estava em falta. Nesse dia o meu tutor confiou-me o seu nome, chamava-se Merlin. Uma tempestade de pensamentos confusos invadiu a minha mente. Se era Merlin e eu me chamava Arthur quereria isto dizer que eu era O Rei Arthur? O lendário Rei Arthur? Seria mesmo isso? Passaram-se dias e por cada um que passava tudo era mais nítido. A curiosidade de saber o que estava para acontecer era mais forte que eu, comecei a fazer muitas perguntas, perguntas a mais, nenhuma sobre aquilo que éramos, sobre isso estava bem esclarecido, mas sim sobre a lenda do Rei Arthur. Certo dia em que passeávamos pela floresta, perto de uma pequena vila, mencionei mais uma vez a lenda do Rei Arthur, falei na espada Excalibur e subitamente fui fitado pelos olhos de Merlin. “Diz-me, o que nasceu primeiro, a galinha ou o ovo?”. De imediato pensei nas velhas perguntas que me fizera enquanto criança mas depois percebi o que realmente queria dizer, eu estava ali para cumprir algo, a lenda aconteceu, ia acontecer e estava a acontecer. Esta era mais uma forma de contornar a regra e relevar, de uma certa forma as Três Verdades, não só aos Renascidos mas também aos Adormecidos. Nesse dia, durante uma caminhada na floresta, e após esse pequeno diálogo, Merlin levou-me até uma clareira. No centro havia um manto que aparentemente cobria algo. Merlin agarrou este manto e revelou a lendária Excalibur cravada numa pedra revestida a musgo. Devo dizer que não fiquei muito impressionado, era uma espada normal, com pouca ou quase nenhuma decoração apenas a forma cruciforme em metal bastante polido com um punho preto que era bastante ergonómico. Estava suja, e havia algum musgo a querer subir pela lâmina. Merlin pediu-me que retirasse Excalibur da sua prisão e eu, sabendo a minha condição, nem pensei duas vezes. Empunhei a espada mas não a consegui mover. Merlin riu-se e de uma forma sarcástica, levantou a voz e perguntou-me se não era eu o lendário Rei Arthur. Aquele riso irritou-me de tal forma que saltei para cima da pedra e tentei mover a espada com as duas mãos, por entre suor e grunhidos nada aconteceu mas estava decidido e não ia sair dali sem aquela espada. Minutos depois uma multidão de gente estava ali reunida, rindo-se do meu esforço. Lenhadores, ferreiros, crianças e até mulheres da povoação vizinha. Todos pareciam já ter tentado mover a espada, para eles eu era só mais um parvo a cair na piada mais conhecida do reino. Foi quando sai da pedra para desistir que Merlin me segredou ao ouvido. “Basta carregar na saliência que está na guarda da espada”. De seguida, virei-me para pedra, olhei bem para o punho e guarda da espada, notei que tinha uma pequena saliência que passava facilmente por decoração. Olhei em redor para aquela multidão e logo de seguida para Merlin. Percebi o que ele queria. A sua intenção era que as pessoas me vissem a retirar Excalibur, para que me considerassem o seu rei, como na lenda. Foi então que encarei Excalibur, avancei com um passo pomposo, empunhei-a e pressionei a saliência que fez sair um raio de electricidade pela lâmina libertando-a assim da pedra. Levantei a espada o mais alto que consegui no meio de caras de espanto, era surpreendentemente leve, os raios de sol que passavam por entre a copa das árvores faziam a lâmina brilhar. Naquele dia fui coroado rei, naquele dia eu fiquei conhecido como Rei Arthur, o lendário Rei Arthur.
O resto da estória penso que todos já sabemos, o que não sabe é que o Santo Graal era mais uma pista sobre a primeira verdade e que Merlin fraquejou. Merlin, bem...Merlin tinha mais de mil ciclos e sabia a primeira verdade quase desde o inicio. Não conseguindo viver com a frustração de não a poder revelar, certa noite quebrou a regra, mas isso é outra história. Enfim, deixe que lhe conte sobre o ciclo seguinte.

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